quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Meia noite em Paris ou sobre o poema filmado

Se um poema pode ser filmado, este é o caso de Meia noite em Paris, a maravilha mais recente apresentada por Woody Allen. É isso mesmo, não sou crítico de arte, sou espectador, por isso não economizo nos adjetivos e superlativos quando os uso. Woody Allen é um gênio, um artista que por ter feito tantos anos de psicanálise não tem pudor em abordar a neurose ou a nossa psicopatologia da vida quotidiana. Ele faz isso há muitos anos, vem fazendo de diferentes maneiras sempre geniais. Costumo dizer que ele constituiu sua própria teoria sobre o sujeito.
Um verdadeiro artista sempre é capaz de nos surpreender, costuma estar mais perto do inconsciente, como nos adiantou Freud: “O artista precede o psicanalista”. Qual foi para mim o ponto de captura, a abertura que me fez embarcar na trama? Woody Allen foi preciso na combinação de dois ingredientes fundamentais nesta história: melancolia e humor. A medida certa acarretou o seguinte resultado: melancolia + humor = delicadeza.
A delicadeza é o efeito poético desse filme delicioso que nos brinda em sua abertura com tomadas inesquecíveis da sempre eterna e belíssima Paris. Mesmo que alguns críticos rebatam argumentando tratar de cinema turístico. Cabe ainda mencionar a linda trilha sonora que ilumina as cenas.
Woody Allen está diferente. Havia algo de rancor, frustração, ressentimento e descrença em suas receitas de humor. Ele sempre conseguiu resultados incríveis, sem dúvida. Entretanto, seu humor acarretava outras possibilidades de sentimentos, como por exemplo, a sensação de sermos ridículos, risíveis e mesquinhos em nossa existência.
Em tempos sem luto, falar de melancolia é muito delicado. A nostalgia e a saudade por aquilo que nunca vivemos, digamos a realização do ideal do Outro, nos traz uma profunda dor de existir. A nostalgia é a dor que não existe, por isso mesmo a mais lancinante quanto nos chega ao coração, em nossos dias sem cor. Falar do que não existe, eis o desafio de Woody Allen.
 Mas sua genialidade se faz presente ao nos brindar com a personagem que a personifica: Adriana (Marion Cotillard). Adriana é linda e sensual, uma combinação ou parceria entre a nostalgia e o belo. O encontro entre Gil (Owen Wilson) e Adriana é a interpretação da forma mais freudiana, como se ocorresse num sonho, do sentimento que habita o perdido roteirista, a nostalgia de seu desejo. O sofredor nostálgico guarda sempre uma relação anacrônica com seu desejo. Gil tem saudades do que ainda não viveu, daquilo que não pode saber por estar alienado ao tempo do Outro.
Gil é desses sujeitos que se deixa conduzir pela demanda do Outro. Escreve roteiros competentes para filmes de sucesso nos padrões de Hollywood e dos quais está farto. Vai se casar com Ines (Rachel McAdans) que parece querer ditar seus passos. Está envolvido com o projeto de um romance, algo ousado para ele, porém está inseguro e vacilante, a própria noiva não lhe põe muita fé.
O desorientado personagem acabará por embarcar num calhambeque que lhe surge na batida da meia noite. Perplexo descobrirá que seu destino foi a Paris dos “Anos de Ouro”, dos anos 20. Encontra-se pessoalmente com ícones daquela época, artistas como Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Picasso, Dali, Buñuel, Gertrude Stein e tantos outros.
Este é um modo de Woody Allen nos fazer ver que Gil está alienado ao tempo do Outro, esses “Anos Dourados” da nostalgia de nosso personagem virado para o passado idealizado e não vivido, assim ele se lamenta: _ “Nasci no tempo e lugar errado”!
É nesta errância onírica, dado que ele dorme em sua vida o seu sono, que ele encontra Adriana, a jovem estilista que gostaria de ter vivido na Belle Epoque. Ela acende em Gil o seu desejo, ela o seduz, ela que é a personificação bela de sua nostalgia.
Woody Allen é um mestre ao conjugar nessa aventura onírica a melancolia e o humor, tudo é tão delicado que nós, espectadores, não percebemos como passamos do sorriso suave para os olhos levemente molhados. Não se trata exatamente do cômico, do caricato, mas de um nos fazer ver o tropeço do sujeito ao topar com seu desejo que ali se apresenta e ele não o vê, e se o vê não sabe como agir. Aqui, cabe o elogio ao desempenho de Owen Wilson ao dar vida ao perdido Gil, que entre a bebedeira e seu sono melancólico protagoniza cenas e situações pitorescas. Não interpreta um bufão, não é o caso. Há uma medida entre o que seria o drama e a comédia do sujeito, o diretor nos faz entrever o pitoresco da relação do sujeito com sua falta_ o nascimento do desejo. O humor é delicado e não burlesco.
 Segundo Freud, ao contrário da melancolia que apresenta o eu (moi) em ruína, o humor o eleva, fazendo o narcisismo triunfar. Ele insiste que no humor o eu se recusa a ser atingido pelas provocações da realidade. Cita a anedota do preso que vai ser executado na manhã de uma segunda-feira: “A semana está começando otimamente”. Neste caso o humor não é resignado, senão rebelde. Além do triunfo do ego, obedece ao princípio do prazer. Assim, evita-se o sofrimento e se produz prazer. Acredito, contudo, que na criação humorística do artista se trata exatamente em abrir mão do narcisismo, da supervalorização do eu. O artista faz da dor narcísica a causa de sua criação, produz um efeito estético com isso. Não é o que denominamos de sublimação?
Teresa Palazzo Nazar, em seu livro O sujeito e seu texto (Companhia de Freud, 2009, p.117), cita Rouanet e sua definição de shandismo: (...) “humor afável e tolerante, capaz de perdoar transgressões próprias e alheias, mas também de zombar, sem excessiva malícia, dos grandes e pequenos ridículos do mundo”.
Woody Allen nos dá a ver como se faz para chegar ao luto atravessando a nostalgia melancólica. Onde houver o luto, poderá haver o humor. Lembremos Lacan ao propor no final de análise não uma resignação melancólica, mas um entusiasmo, um saber fazer com humor sobre nossa perda, nossa paga.
Enfim, Gil se encontra, perdido que estava no tempo do Outro, à espera da demanda e do reconhecimento do Outro. Vai permanecer em Paris, vai concluir seu romance, sem garantias. Termina o noivado, permite abandonar Adriana no lugar ideal de sua nostalgia, mas reencontra no real de seu presente aquela que seria a protagonista de seu romance: a garota do antiquário, aquela que toca os discos de Cole Porter no gramofone: “Let’s do it, let’s fall in Love!” (... Em Paris, é claro).
                                  05/07/2011


        
 

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Ler vc, meu amigo, me traz muitas coisas boas, suas palavras a tanto não ouvidas por mim, me remetem a lembranças de um tempo em que isso era comum, e eu adorava. Foram muitas trocas e diversos horários, né? Mas saiba que muito do que penso e do que faço até hoje, nasceu exatamente nas nossas longas e proveitosas conversas! Lembro, sempre, com muito carinho!
    Bjão

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    1. Rodolfo, pra vc eu posso confessar, só agora consigo responder aos comentários..rs
      Espero que vc continue acompanhando meu blog.
      Saudades,
      Abílio

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