domingo, 21 de outubro de 2012

Quando amar é o que brota do lodo do ódio

Atire a primeira pedra quem não se envolveu com o final de Avenida Brasil. Vera Holtz fez uma linda corruptela: “Ave Brasil”! A novela de João Emanuel Carneiro realizou uma perfeita síntese desse Rio de Janeiro que passa da primeira década do novo século. A cidade do futuro e das Olimpíadas de 2016 é justamente aquela metaforizada pelo Lixão. Se há crime, impunidade, negligência e injustiça, João Emanuel Carneiro cria, sobre aquilo que já existe, uma espécie de purgatório por onde vítimas e algozes devem passar. O lixão é real tanto quanto é uma imagem “apoética”, Dali chamaria de método crítico-paranóico. Isso quer dizer que é a própria interpretação da realidade. Uma trama que começa no Lixão pode dar no que? O ódio funda o amor. Eu só posso me pensar eu, se puder me separar do Outro. Mas, para isso, tenho antes que me reconhecer nele. Logo, de início não há Carminha sem Nina e vice-versa. A história das duas protagonistas apresenta toda sorte de elementos que permitam significados terríveis e abomináveis. Ficamos mesmo tentados a depositar “nesse próximo de mim” todas as razões para minha infelicidade, minha orfandade e desgraça. Carminha veste muito bem a megera. Sempre precisamos de uma: a madrasta da Cinderela, a bruxa da Branca de Neve e Cruela Cruel. Carminha é a mais nova imagem arquetípica de um Brasil abandonado. Sim, porque descobrimos que ela também foi vítima. Somos filhos de uma nação parida, rezava a história, como que “por acaso”. Somos todos bastardos ou mal adotados. Em suma, João Emanuel Carneiro nos deu um nascedouro: o Lixão. Mas, o artista tem seus métodos. Ele nos guiou por uma trama que pôde nos dar alguma esperança. Um Cadinho que pode amar e casar com três mulheres e, ainda assim, ser fiel a elas; uma periguete que pode ensinar a qualquer mulher como amar seus homens e, incrivelmente, a melhor tradução do macho brasileiro dos dias de hoje: um cara que larga a chupeta para descobrir, enfim, como amar uma mulher (não perder o pênalti). Mas, não se assustem, digo aos conservadores de plantão que é tudo licença poética. Além do mais, o subúrbio entrou na moda, sobretudo, quando nos ensina a encontrar a alegria espontânea e verdadeira, um retorno à simplicidade que nos livra dos anseios de certas insígnias de poder e valor. A vida pode ser mais simples: Oi Oi Oi.... . A casa da família Tufão, mais especificamente a mesa de jantar, é o retrato sociológico e antropológico de um Brasil no novo século. O dinheiro muda de mão, as relações arcaicas entre o senhor e o serviçal ganham novas cores, os laços familiares se sustentam no fio da navalha do fracasso. Contudo, ao final de mais um dia, estão todos à mesa. Bebendo, falando alto, um invadindo a vida do outro. João Emanuel Carneiro vai sentir muitas saudades dessa família. Tendo Tufão como o paradigma do brasileiro sempre confiante: “o corno é sempre o último a saber” (por alguma razão me ocorreu a figura de Lula frente ao Mensalão). Todavia, ressaltemos o mérito de sua benevolência que o permitiu ser pai de filhos adotivos. Parabéns Tufão! Voltemos às protagonistas: Carminha e Nina. Amar não é uma coisa do bem, das melhores intenções. Esse é o amor egoísta, pois o que te peço é que me retribua na mesma moeda. No ódio não é assim, a moeda pode sempre ser outra, a pior. As duas viveram da paixão do ódio, talvez a mais poderosa. Por essa paixão sacrificaram suas vidas, colocaram as melhores coisas em risco. Viajaram até o mais profundo do lodo do ódio. E aí o que encontraram? João Emanuel Carneiro novamente nos deu uma linda lição. Quando ali elas finalmente chegaram, puderam voltar a viver. O objeto do meu ódio, elas descobriram, não é você, mas o meu mais arcaico sentimento de desamparo. Somos duas mulheres forjadas na origem de nossa desgraça. Dois sujeitos que cedo demais tiveram que se separar do objeto amado, por isso elas eram mais fortes, por isso aguentaram toda a barra que viveram. Carminha e Nina nos ensinam que amar brota do lodo do ódio, o ódio de ver-se desamparada como condição humana. Não há algoz, não há figura maligna que possa justificar minha desgraça, e elas até tiveram motivos em suas histórias. O amar só é possível, depois de sobrevivermos ao ódio de constatarmos que não há Outro culpado de minha infelicidade. João Emanuel Carneiro nos aponta uma bela possibilidade: Faça o melhor com o quase nada que recebeu. Pare de justificar sua covardia e arrogância em nome daquele que seu ódio narcísico e doentio insiste em fazer consistir. Se assim puder transcender, quem sabe no fim, haverá apenas a diferença? 20/10/2012

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O que queremos para os nossos filhos?

Essa é uma pergunta que nos fazemos quando nos angustiamos com o futuro e a partir do desamparo que experimentamos como sujeitos. Mais um adolescente morre tão precocemente, seria possível evitar essa tragédia? Isso jamais se saberá. O que não nos exime de refletir sobre as razões que levam um jovem a viver os limites do que é suportável. Haverá hoje uma educação pautada nos resultados, no desempenho ou na adequação, que subtraia a singularidade de uma existência? Somos o que desejamos ser ou o que devemos apresentar como sucesso? Sim, vivemos numa sociedade altamente competitiva que anula a noção de amizade ou solidariedade. Os treinamentos propostos sob o eufemismo de “recursos humanos” são na verdade maneiras de estimular fórmulas de sucesso pessoal que estão longe de levar em conta a diferença e a criatividade. A criatividade e a emergência de uma diferença são possibilidades pensadas por Freud como alternativas à sonhada felicidade. Se não podemos ser felizes integralmente ou definitivamente, talvez possamos experimentar uma pequena margem de liberdade, quem sabe a de um desejo próprio e singular? O remédio de Freud contra a neurose não era a felicidade, mas o humor e a criatividade. Ele era cético quanto a um estado duradouro da tal felicidade. JP era um aluno do São Bento como eu fui. Um colégio rigoroso quanto à disciplina e quanto ao desempenho de cada aluno. Eu reconheço todos os benefícios que a formação nesta instituição de ensino me proporcionou. Lembro com muito carinho de colegas e professores. Porém, é um colégio cujo ensino, em pleno século XXI, está restrito aos meninos. Talvez uma questão para ser levantada. Se algumas meninas frequentassem o cotidiano de JP, se ele tivesse um convívio com o jeito feminino de ser, será que alguma coisa pudesse se dar de outra maneira? Talvez sim, talvez não. Mas é um fato, o de que, nos dias de hoje, um homem não só se encontre com o sexo oposto no santo altar. As mulheres estão na cena do mundo e não mais restritas ao lar. Esta é uma das questões particulares desse colégio que frequentei e tenho saudades. Há hoje um ranking de escolas, o São Bento, tanto quanto algumas outras, é sempre destaque. Eu conheci Homero, Sófocles, Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade nesse colégio. Minha querida e inesquecível professora Dona Amélia recitava em lágrimas versos de Drummond. Eu não estudava para o vestibular, estudava para ser gente. Contudo, há outro aspecto polêmico: os dogmas religiosos. Devo dizer que os valores cristãos influenciaram minha educação e o meu pensamento. Não digo o mesmo da Igreja Católica Apostólica Romana e, muito menos, da Igreja Evangélica cuja institucionalização do cristianismo, suas práticas e discursos me despertam muitas críticas e restrições. Mas, Lacan adiantou que a religião triunfará sobre a ciência. Vou aqui parafraseá-lo quando fala das psicoterapias: “Não é que não ajude, é que leva ao pior”. Fazer o bem acima de tudo é o que há de pior, pois Freud nos fala do impossível desse mandamento. “Quero o teu bem à imagem do meu”. É isso que queremos para os nossos filhos, que eles sejam aquilo que não fomos. Em outras palavras, desejamos para nossos filhos os nossos fracassos, o que não conquistamos. Não preparamos nossos filhos para serem sujeitos de um mundo que nos transcenda, queremos que eles realizem nossas frustrações. Pais que somos no desamparo de nossa existência errante, descontínua e faltosa. “Senhor, tende piedade de nós”. Seres que dormem sonos perturbados, enquanto as crianças de nossos sonhos se perdem no desafio de sobreviver neste mundo cão, neste mundo do sucesso material e do sacrifício da diferença_ de uma maneira própria de existir. O que queremos para os nossos filhos quando os matriculamos numa escola não para aprenderem o novo, a novidade, mas para serem números de uma estatística bem sucedida? “O Colégio PhD....(Sei lá o que?) obteve 90% de aprovação no Vestibular”. É isso que realmente importa? Isso garantirá o futuro de seu filho? Vamos abrir os olhos, pois crianças e adolescentes caem da janela de seus próprios sonhos e fantasias. Responsabilidade, empenho e estudo são elementos necessários para alcançar metas, objetivos e etc. Alguns conseguem mais, outros nem tanto. O potencial humano não se mede pela quantidade, mas se apresenta na forma particular como cada um lida com seus limites e dificuldades. O mercado é competitivo, mas não podemos negligenciar valores como respeito e tolerância. JP se foi precocemente. Poderia ser o meu filho, o seu filho. Poderia estudar em diversas escolas desse mundo altamente competitivo que não quer saber da diferença. Quem sabe haverá um Blade Runner quando nos tornarmos máquinas rebeldes e incapazes de amar? Abílio Luiz Ribeiro Alves 08/10/2012

domingo, 19 de agosto de 2012

Da beira do caminho ao fundo do coração

Um filme que fala de dor, perda, esperança e tendo como motivação canções de Roberto poderia cair numa estrada perigosa de sentimentalismo exagerado ou piegas. Breno Silveira já havia acertado na medida no blockbuster “Filhos de Francisco” e agora, será que iria errar a mão? Acontece que ele filma com autenticidade, é fiel a sua estética: beleza, sensibilidade e honestidade são ingredientes que em sua mão fazem um ótimo caldo. E as canções de Roberto? Elas fazem o filme acontecer. As letras de Roberto Carlos nos levam diretamente para o que há de mais exemplar do imaginário cultural e romântico desse nosso imenso Brasil. As músicas de Roberto têm a capacidade de fundar, de inventar, em nossos corações um romance, um novo caso ou um novo amor. É ouvir e ficar apaixonado. Tiro e queda. Cafona? Também é às vezes. Mas na maioria das ocasiões uma tradução do arquétipo amoroso brasileiro. Eu fiquei emocionado desde a primeira cena, aquele caminhão na aridez da paisagem e a música de Roberto, sei lá! Um lance de dar nó na garganta. João Miguel é João o caminhoneiro, e tantos outros brasileiros chamados João, um lindo nome! João Miguel, com atuação magnífica e a generosidade de um grande ator que é, nos oferece um João brasileiríssimo pelas estradas desse gigante país. Um homem que leva consigo pela estrada sentimentos confusos: dor da perda, culpa e remorso, ressentimento e paixão. João foge de si mesmo, daquilo que não pôde suportar de sua divisão entre dois amores. João, como quase todos os homens, esteve dividido entre a mulher que amava e aquela que desejava (Helena e Rosa, quem resiste a esses nomes?). Ou amava e desejava as duas alternadamente, essas coisas que enlouquecem a psicologia amorosa de um homem como ele, como todos nós. Sim, João é um homem tipicamente brasileiro: virilidade, paixão, dúvidas, infidelidade e infantilidade. Um menino que se abandona ao ver-se abandonado por seu destino cruel e fatal. A divisão a lhe cobrar sua dívida daquele jeito: ter uma em seus braços, enquanto a outra tem a vida ceifada numa curva da estrada. João não pôde enfrentar o seu pecado e cai na desgraça de sua dor a fugir pelo mundo: ele e seu único CD de Roberto. Contudo, o menino desamparado que carrega consigo lhe aparece no meio do nada, à beira do caminho. Duda encarna aquilo do que João foge. O que é a atuação de Vinicius Nascimento? Lindíssima e comovente maturidade de um ator de treze anos. Duda é João ainda adolescente, sou eu ou você. Duda a pegar o caminho e a estrada do mundo sem pai nem mãe. Assim nos encontramos muitas vezes, a orfandade do sujeito na sua condição desejante. Duda não tem nada, apenas um único desejo: encontrar o pai. Aí está toda a esperança: há um pai. Ele está muito longe, em São Paulo. Perto de Duda está João, aquele menino homem abandonado de si mesmo. Não quero contar mais nada do filme, é suficiente. Ressalto o brilho da participação de Dira Paes. Gostaria de voltar à ousadia de Breno Silveira. Mais especificamente à honestidade de seu fazer cinema. Silveira nos leva à dor de uma perda, dor que tão bem ele conhece. Faz acompanhar essa dor de esperança. Ele nos leva por paisagens diversas, alternando o árido, o feio, a beira da estrada, a beleza e simplicidade poética de algumas fotografias. Ele nos lembra de que somos brasileiros, de Petrolina, Juazeiro até São Paulo_ terra das desesperanças, das esperanças, quanto contraste e contradição! Breno Silveira nos oferece a possibilidade de pensar sobre coisas que deixamos pelo caminho: pessoas queridas, histórias, paixões, pecados, culpas e desejos. Num país de tantos brasileiros órfãos, sem filiação na certidão de nascimento (quantos nem chegam a ter a certidão?), ele nos alenta com uma bela história de como um filho funda um pai a partir de seu desejo, sua falta. E, ainda, nos dá a esperança de que um luto seja possível. Vamos com as canções de Roberto, da beira do caminho ao fundo do coração. 10/08/12

segunda-feira, 23 de julho de 2012

E aí comeu? Ou sobre o risível do medo de amar masculino


Sucesso de bilheteria, a sala estava quase lotada ontem. Todas as jogadas de marketing foram eficientes, contudo, o filme tem mesmo o seu valor. Despretensioso e com bom humor, a fita vale o ingresso.  Comecemos pela química que envolveu os atores e a amizade convincente que eles protagonizam. A amizade é aquilo que resiste aos imperativos de sucesso e enriquecimento a qualquer custo nos dias de hoje. Cachoeira e Demóstenes, por exemplo, não são amigos, me parece que isso é claro ou não? A amizade verdadeira passa por uma identificação pela dor, pelo sofrimento do qual um amigo se faz solidário ao outro. Os três personagens estão sofrendo, cada um a sua maneira, mas todos pelo mesmo motivo: amar as mulheres. “Heterossexual é quem ama as mulheres” _ define Lacan.
Desde Freud, sabemos que um homem precisa depreciar a mulher enquanto objeto amoroso para poder desejá-la. Daí o título do filme: E aí comeu? É quase uma mensagem cifrada que quer dizer: “Não vem com essa de pagar paixão”. Não se pode falar sério de amor, isso não cai bem para um homem. Mas, o bar é uma espécie de consultório sentimental dos machões, é um lugar sagrado e de encontro entre amigos. Ali, é possível chorar as mágoas. Contudo, a cumplicidade daqueles caras permite que eles se comuniquem num dialeto próprio, num linguajar que soa para as moças sentadas ao lado como grosseiro e chauvinista. Essa modalidade de discurso permite classificar, segregar e definir as mulheres de acordo com a lógica estritamente fálica e masculina. Isso interessa muito as frequentadoras de saias desses ambientes, mesmo quando elas se espantam com uma linguagem tão rala. Aqueles caras falam com muita propriedade sobre o assunto do sexo, sabem o que dizem, mas não sabem do que sofrem.
Um casado, um recém-separado e um solteiro: o que eles têm em comum? O medo de amar. O amor é para o homem a pior parte de uma mulher. Sim, os homens gostam das mulheres de forma fetichista_ peitos (siliconados ou naturais), bundas, pernas e coxas, ainda, sexos peludos ou desenhados por depilações. Desejam o que veem e amam o que não enxergam. Uma mulher para ser amada precisa ser decifrada. Tarefa impossível e insuportavelmente angustiante para um ser que prefere, muitas vezes, não recorrer às metáforas e ir diretamente e mecanicamente ao assunto.
Os diálogos são impagáveis e muito instrutivos, pois não venham com essa de que uma boa dose de preocupação e fundamentos sobre técnicas e funcionamento não ajudam! Homem que se preza (fiz o ato falho de escrever: homem que se preSa, o corretor de texto me salvou) não acredita que sexo é poesia. Fazer amor é poesia, diz Lacan. Mas, praticar o esporte exige sim manobras arriscadas e radicais, bom desempenho pelos relevos, curvas, caminhos e estradas de uma bela geografia. Um pouco de frase de bar: “Se Deus inventou algo melhor que a mulher guardou para ele”! Nesse caso, foi fantástica a presença do professor/garçom Seu Jorge no papel de um sósia de Seu Jorge. Os diálogos politicamente incorretos deram um tom espontâneo e verdadeiro às segregações quanto à raça, atributos físicos e, digamos, idiossincrasias dos parceiros sexuais.
Voltemos, entretanto, ao medo de amar dos homens, de que forma ele comparece na trama? Honório (Marcos Palmeira) é um sujeito experiente, é ele quem surge em primeiro plano e na primeira cena no banheiro masculino _ “o banheiro é a igreja de todos os bêbados (Cazuza)” _ apresentando os outros personagens. Ele é casado com Leila (Dira Paes) e com ela tem três filhas. Há a crise do casamento, o peso decorrente do tempo e das dificuldades sobre as diferenças. Eles estão afastados e não conseguem conversar, estão ressentidos. Honório num dado momento é tomado por um ciúme intenso, acredita que Leila possa estar lhe traindo. O ciúme é o sintoma de seu medo de amar, de dizer o quanto se importa com ela, o quanto a deseja.
Afonsinho (Emílio Orciollo Neto) é um cara que vive da grana do pai, adora palavras cruzadas, mas tem a ambição de ser escritor. Como escrever um romance, se nunca viveu um amor de verdade? Só conhece as mulheres através dos favores sexuais remunerados de prostitutas. Afonsinho quer que tudo acabe sempre numa suruba. É no fundo um sujeito que evita o amor por medo. Reduzir tudo a sexo comercial é sua estratégia.
Fernando (Bruno Mazzeo) acaba de se separar, está sofrendo. Todavia, algo dá a entender que, por alguma razão, não se empenhou para evitar o que parece ter sido uma separação precoce. Ele e Vitória (Tainá Muller) transparecem suas dúvidas e oscilações quanto à decisão tomada. Mas, Fernando deixa rolar, vacila por seu medo de amar.
Os inseparáveis amigos de mesa de bar seguem filosofando, teorizando e concluindo verdades sobre o incerto terreno das trocas amorosas e sexuais entre os sexos. O humor e o riso tornam possíveis abordagens divertidas e prazerosas sobre um tema tão espinhoso que é o da incompatibilidade entre os sexos. Lacan é mais definitivo ao afirmar que “não há a relação sexual”. O amor vem suprir, vem fazer suplência frente a esse impossível. Amar é a via para o outro sexo. Mas, se os homens temem o amor, como chegar ao continente feminino?
O filme mexe com o imaginário masculino e oferece ótimas saídas aos personagens. O roteiro é bem mais generoso quanto ao que Freud propôs como saída para o Édipo feminino. Fernando tem a chance de começar tudo de novo com a vizinha linda, dezessete aninhos, virgem, sexy e apaixonada. Enquanto isso, morremos de inveja, o ideal existe só para ele.
Afonsinho pôde realizar o fetiche mais comum e inconfesso dos homens: fazer da puta a mulher amada. Casar com a puta, possui-la na cama e no amor. Definitivamente, não há fetiche mais almejado do que esse.
Tudo na verdade é uma grande brincadeira, feita com bom humor. Talvez só Honório e Leila sejam de verdade. Um casal possível. Um casal que tem a chance de se reencontrar, mesmo que se percam depois. Mas que possam fazer isso enquanto o amor dure. Honório é o personagem que prova que um homem pode e deve amar sem garantias e sem medo. Leila faz tudo valer a pena. Ela é uma mulher possível. Deles não tenho inveja, pois há muitos anos divido essa difícil tarefa com uma mulher que me ensinou a não temer o amor. Dedico a ela este texto.

23/07/2012

Entre o mito e a verdade: um Raul no meio


Hoje cedo li a crônica do Xexeo sobre os dias nublados no Rio de Janeiro. Fiquei pensando sobre os tempos cinzentos que descolorem nossa atualidade. Vivemos um período sem grandes novidades, tudo parece já visto ou reeditado. Fiquei um tanto enjoado e entediado com mais uma semana que acabava de começar. Não contava com o que estava por vir.
Programação de cinema na mão e a boa surpresa ao saber que o filme de Walter Carvalho (Raul: o início, o fim e o meio) ainda estava no circuito. O final da tarde foi emocionante. Demorei a sair da sala de projeção, fiquei muito comovido. Ao concluir com o fim que é a morte, o diretor nos deixa com o meio: nem mito, nem verdade, mas o que ele nos faz entrever sobre um homem, seus parceiros, amores, músicas, a dor de existir, enfim, as coisas que tornaram Raul um genial e improvável roqueiro baiano apaixonado por Elvis Presley. O título do filme é uma sacada maravilhosa do diretor ao condensar Raulzito:

                                         Eu sou o início,
                                         O fim e o meio.

Seria ele uma metamorfose ambulante? Certamente, uma lhe ocorreu quando ainda era uma criança e se apaixonou por rock’ n roll. Se tudo começa do começo, Walter Carvalho faz referências ao começo de tudo, o contexto que acabaria por lançar aquele menino baiano no mundo. E aí um depoimento:
“O Rock não era contra o pai, mas algo que dava ao jovem uma virilidade com a qual o permitia se medir ao pai” _ não é exatamente isso, mas assim se transmitiu para mim.
O Rock é masculino, mas não existiria sem suas musas, nem sem Rita Lee, é claro! Mas o Rock é uma ereção, e isso, pelo visto, nem as bebidas e as drogas roubaram de Raul. Um menino de minha geração não poderia prescindir dos acordes voluptuosos de uma guitarra. Era Viagra na veia! É incrível como o diretor consegue arrancar juventude e frescor presentes nas expressões e depoimentos daqueles velhos companheiros de adolescência. Alguns, mesmo que castigados pelo tempo, ainda conservam traços da alegria e da beleza impressos em antigas fotografias. Mas não sejamos completamente românticos, a erótica do Rock é curiosa, a combinação de sexo, drogas e rock’n roll tem levado muita gente a um final melancólico.
Nasce Raul Seixas, o improvável roqueiro baiano, surgido das influências musicais de Chuck Berry, Little Richard e, sobretudo, Elvis Presley. Um inglês com sotaque baiano, golas puxadas para cima, atitude e talento fizeram o artista. Há muitas histórias, muitos risos e boas gargalhadas. É um momento muito pitoresco e contagiante do filme. Uma grande citação aos tempos, companheiros e parceiros que marcaram o percurso de Raulzito. Ele teve bons e inspiradores amigos, parcerias incríveis, como as com Cláudio Roberto.
Paulo Coelho não foi seu amigo, não no sentido próprio do termo. E não é necessário definir o que foi a relação entre eles. Walter Carvalho não foge das questões polêmicas, o que é fundamental é que ele não tem a pretensão de que elas sejam respondidas. O diretor sabe o que quer com suas lentes, se há algo que ele não quer é fechar a perspectiva para buscar a verdade no fundo. As perguntas interessam mais que as respostas. Nesse sentido, Paulo Coelho é bem interessante, seu depoimento é absolutamente distinto dos outros. Ele fala sem manifestar afetos, sem se comover e nem achar nada muito engraçado, a relação dele com o Raul foi o que foi, rendeu ótimas parcerias, se amaram e se odiaram. Sim, apresentou todas as drogas ao roqueiro. Sem problemas, Raul já era adulto. Como se dizer tudo isso, assim desse jeito, não tivesse grandes consequências. “Paul Rabbit”, como brinca Eduardo Dusek, me convencia. Até chegar ao primeiro momento estranho. Eis que no meio da entrevista, em Genève, pinta uma mosca. Paulo Coelho diz que não há moscas por lá, então, me pareceu que ele ficou “bolado”. Eu me perguntava se não era um efeito especial pensado pelo diretor. Contudo, imaginei o Walter Carvalho levando a mosca num vidrinho até a Suíça. Loucura, né?
Outro momento tenso da entrevista foi quando Paulo Coelho teve que responder a afirmação feita, por um seguidor de Aleister Crowley, de que Paulo Coelho jamais reivindicou a devolução de uma procuração sobre a gestão de sua alma deixada por escrito pelo próprio escritor a ele, seu mentor ocultista. O cara alega que seria necessária uma carta por escrito. O autor de Diário de um Mago propõe jocosa e nervosamente: _ “Não serve o abandono?”. Bom o cara é mago, quanto a mim, não deixaria uma procuração sobre minha alma com ninguém!
Pois é, Paulo Coelho se destaca de tudo que há no filme, e ficamos sem saber exatamente por que. E foi muito bom isso. Não era mesmo para se saber. Há algo que só eles viveram no auge da loucura, juventude e criatividade. Para que julgar? Pensei neste instante num trecho do Rock do Diabo:
Enquanto Freud explica,
           O diabo dá um toque.

Então, o espaço é aberto para os amores de Raul. Fiquei impressionado. O cara foi muito amado por suas companheiras (Glória, Tânia, Kika e Lena)! Edith, a primeira esposa, que havia se retirado de cena levando a filha do casal, Simone, se esquiva dos depoimentos. As outras, por alguma razão, mais generosas falam coisas surpreendentes. Em que sentido? Apesar de todo o sofrimento e drama acarretados pelo alcoolismo e a diabetes de Raul, aquelas mulheres o amaram profundamente. Até onde uma mulher se sacrifica para salvar o seu amor? E parece que estariam dispostas a ir mais além. São depoimentos belíssimos, mesmo em momentos até risíveis. As mulheres de Raul entenderam a sua alma, sua liberdade, seu drama, enfim, a sua loucura ou melancolia. Quanto aos filhos, eles aparecem através de suas mães, mais, no desejo delas por aquele homem. Fica, no entanto, o mistério sobre Edith e Simone, a filha que Raul se viu roubado.
O diretor aborda ainda a polêmica parceria com Marcelo Nova (Camisa de Vênus). Teria o citado músico se utilizado da frágil ou delicada situação de Raul para se projetar? Walter Carvalho abre o espaço para que a pressa não decrete a verdade. Cada um age por suas razões. Às vezes, o mal parece o bem, em outras, o bem sugere o mal. Paciência. Ninguém é tão santo ou diabo. Ou, cada um pinta seu santo ou diabo como quer.
O filme conta com as participações super especiais de Nelson Motta, Pedro Bial e Caetano Veloso. Walter Carvalho consegue diluir certezas, evitar julgamentos, manter questões em aberto. Não quer fazer consistir o mito, nem a verdade. Ele tem a visão sensível da obra que inclui o homem marcado por sua história, sua arte e dor de existir_ o humano.
Walter Carvalho reserva para o final uma grande questão sobre o artista. Raul tinha certa obsessão pela morte. Por um lado, parece que a proximidade dela lhe era libertadora, visto de outro modo, sua presença, por vezes, lhe era persecutória. Seu irmão conta que em certa noite Raul, ainda menino, o acorda com um medo intenso da morte. Conta este que o aconselhou um velho remédio: “_ Mano, bate uma bronha!”. Acho que Raul passou a vida negociando com a morte. Haveria ainda outra metamorfose? O alegre menino e improvável roqueiro baiano teria se transmutado em um homem melancólico e cedido definitivamente ao álcool e as drogas? O diretor, numa recente declaração, afirmou que Raul morreu de amor pela primeira esposa, não teria superado seu afastamento e o da filha. Isso teria sido decisivo para sua morte precoce aos 44 anos. Assim, o filme termina com um tango, uma de suas melhores obras: Canto Para A Minha Morte:

A morte, surda, caminha ao meu lado
E eu não sei em que esquina ela vai me beijar...
Vou te encontrar vestida de cetim,
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho que eu quero e não
desejo, mas tenho que encontrar
Vem, mas demore a chegar.
Eu te detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida
Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida.


terça-feira, 1 de maio de 2012

Vinhetas, pequeninas histórias e pitadas poéticas em Nova York


Sábado de um feriado prolongado. A temperatura começa a cair, sobretudo pela chegada de uma frente fria. Uma preguiça que quer te deixar debaixo das cobertas. Ótima desculpa para descansar. Quase não me permito tal situação. Meu corpo pede movimento. O controle da TV ao alcance da mão, eu giro pelos canais por assinatura. Nova York, Eu Te Amo (2009) é o título do filme que faz com que meu dedo pare de clicar. Por algum motivo acabei não o assistindo no cinema e recentemente o preteri na prateleira da locadora.
Ele segue a proposta já realizada anteriormente de Je t’aime Paris. Pequenos roteiros e vários diretores compondo uma colcha de retalhos que se estende muito bem na tela. As cenas e seus personagens têm ao fundo várias citações de pontos interessantes da cidade de Nova York. Esses filmes são geralmente criticados por seguirem a fórmula do que os críticos chamam de cinema turístico. Eu discordo. Não me parece que as referências turísticas e geográficas sejam o objetivo final dos diretores. Mas por que não utilizá-las como inspiração para os roteiros? A vista da Baía de Nova York, Battery Park, Quinta Avenida, Central Park, Chinatown e tantas outras citações a uma das cidades mais conhecidas e visitadas do mundo, lugar que reúne gente de tantas partes do planeta.
As curtas histórias recebem pitadas de poesia de seus diretores. Cenas cotidianas que abordam esteticamente a subjetividade e a singularidade de personagens bem humanos em sua maneira de lidar com o amor e os sentimentos que dele decorrem. Meu fim de tarde de um sábado chuvoso certamente ganhou mais beleza. Eu recomendo o filme.
                                   
                                        01/05/2012

quarta-feira, 28 de março de 2012

Shame ou a Estética do Real

           O cinema é uma constante revolução, mesmo quando não gostamos do que vemos. O espectador não é um psicanalista, mas por alguma razão esse é o meu ofício. Não gostei do que vi. Mas, não posso evitar os efeitos de um registro que se pretende artístico. O diretor britânico Steve McQueen, apesar de contar com as bordas da telona, rasga a fantasia para nos fazer entrever um real e angustiante cenário sexual desse novo século. Uma Nova York citada nas imagens de alguns de seus becos, buracos sujos, inferninhos e vistas panorâmicas. Nada de poesia ou romantismo, o diretor nos oferece uma estética que se adequa muito bem à Nova York depois dos atentados às Torres Gêmeas.
           Queria falar da fantasia, mas vivemos no tempo do deserto do real. Quando não há a lei nada mais é possível, a não ser a destruição do sujeito. Contudo, apesar de todo o horror, no final, havia uma escolha. Eu rezei para todos os meus deuses para que Brandon (Michael Fassbender) visse naquele anteparo, em que a jovem linda e sedutora pôs a mão, uma barra. O filme termina ali onde a barra é o último recurso. Será?
           Eu não escrevi sobre O Artista, por quê? Um filme sobre a arte e a história do cinema. Eu não sei. Que sintoma é esse o meu o de falar do pior? Que tipo de interesse mórbido é o meu? Não é isso, é que o psicanalista não pode dar a sua angústia. Não pode recuar frente ao seu desejo. O de estar do lado do inconsciente. Brandon é um sujeito contemporâneo, alguém que não quer saber. Não quer saber do que não se sabe: uma verdade sobre o que está em causa no seu desejo sexual.  Talvez não seja exatamente isso: “ele sabe, mas mesmo assim”...
            Seja como for, o que percebemos é que por não poder reconhecer nem nomear algo de seu desejo, ele está aprisionado a um gozo compulsivo e mortificante. Ele é um viciado em sexo, ou será que o sexo se viciou nele? Brandon sabe todos os caminhos, ele tem acesso a tudo que é possível de se consumir sobre sexo, ele quer, no entanto, esquecer que é ele quem é consumido, ele é a mercadoria de seu próprio gozo insaciável.
             Aí entra em cena Sissy (Carey Mulligan), a tragédia personificada de suas vidas. Uma personagem carente e devastada que devolve a Brandon algo sobre o seu passado, sobre o abandono, sobre a perdição das criaturas que se tornaram. Haverá um desejo incestuoso entre eles? Esse não seria exatamente o problema. A questão é que ninguém ou nenhuma lei veio interditá-los. Eles estão desgraçadamente carentes dessa interdição fundamental. Desesperadamente, Sissy pede a Brandon que ele a ampare. Esse é um pedido que é insuportável para alguém que só pode responder com seu gozo sexualmente indiferenciado, ele traça de tudo, se não correr para seus buracos sujos vai acabar comendo a irmãzinha, contudo, aí está, por alguma razão, ele a protege disso. Ele deu a ela uma toalha quando ela estava nua diante dele. Ele foi para rua para não escutar a trepada dela com seu próprio chefe casado. Ele diz a ela inclusive que ela é uma imunda por isso. Incrível, logo ele que se deita ou faz sexo com qualquer coisa. O uso que Brandon faz do sexo o coloca numa posição perversa, mas jamais numa psicose. A verleugnung (desmentido) diz respeito a duas operações concomitantes: a de reconhecer a castração e a de recusá-la ao mesmo tempo.
            Brandon não conseguiu fazer sexo com sua colega de trabalho. Algo fugiu do controle, quem sabe ele se deixou envolver, isso seria “fatal”, pois o deixaria numa posição faltosa, inviabilizando sua impostura perversa. Ele está numa posição limite em sua perversão. O perverso se angustia, pois sabe da castração, mas não se angustia em sua posição fetichista, a angústia incide num outro lugar: a posição de Sissy.
             Sissy é uma psicótica ou uma histérica devastada? Não sabemos. O que sabemos é que ela passa ao ato. E que isso faz com que Brandon ceda em sua posição perversa. Ele se angustia e se desespera. A impostura perversa não tem êxito em sua questão incestuosa com a irmã. Já disse que não acho que ele fosse capaz de trepar com a irmã. Por isso mesmo é um fetichista. Contudo, ambos sofrem da carência da lei que viria interditá-los.
            A estética do real nos descortina uma “ultrarrealidade”, como se isso fosse possível, um mundo onde o Édipo fosse abolido da questão humana. Não penso que haja a possibilidade do humano sem essa estrutura mínima e necessária. Acredito também que McQueen pensa da mesma maneira. Sua “ultrarrealidade” visa uma ética. Por isso rezei aos meus deuses, por isso não lhes dou minha angústia, para sustentar minha posição ética.
28/03/2012

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Um Havaí sem surf

            Já quis ser John Malkovich, agora gostaria de ser George Clooney. Ele me devolve certa esperança de que a vida de um homem pode ser interessante depois dos cinquenta (estou quase lá). Ele é talentoso, rico (mora numa mansão no Lago de Como, Itália), bonito, charmoso e... Como vou dizer isso? Bem, “pegador”. Clooney não se reduz a sua boa imagem, é hoje mais do que o médico galã de Plantão Médico. Ele se revelou um bom diretor e ator, é inclusive um forte candidato ao Oscar 2012.
            Adorei Os Descendentes (direção de Alexander Payne), classificado como comédia dramática é uma ótima opção para aqueles que se divertem rindo e chorando ao mesmo tempo, devorando baldes de pipocas (isso eu não posso, meu colesterol não deixa). Nem tudo é possível aos (quase) cinquenta! Contudo, fiquem tranquilos, o filme não é um dramalhão. Todos com quem conversei concordam com isso.
            Começo justificando que meu recorte é insuficiente para abordar todos os elementos da trama. Quanto à questão do título do filme, tive que deixar de fora considerações sobre a origem do personagem principal e as suas relações com a linhagem de descendentes masculinos em torno da rica herança deixada pela tataravó. Privilegiei outra vertente, mais especificamente: o que o citado personagem deixará para as suas filhas?
            Matt King (Clooney) é um advogado bem sucedido, um cara que junta tudo o que ganha, apesar de ser herdeiro de uma fortuna, não surfa e nem acha o Havaí um paraíso. Em suma, um tremendo de um obsessivo. Ele é um cara mortificado, se assim posso defini-lo. Está inerte, provavelmente como sempre esteve, mas agora diante da esposa também inerte num coma profundo. O médico lhe diz que já não há mais nada a fazer por ela, era o desejo dela que sua vida não fosse prolongada daquela maneira. Elizabeth tinha nos esportes radicais e na adrenalina seus antídotos contra uma vida adormecida. Acidentes acontecem, ela sabia disso, então deixou sua vontade por escrito.
            Matt, ao contrário, poderia passar a vida inteira ali, esperando a esposa dar algum sinal de um despertar. Matt é um guardião da morte, como os obsessivos costumam ser. É incrível, mas se ninguém viesse lhe dar um choque de realidade, ele ficaria ali para sempre. É ele quem precisa sair do coma.
            Há algo, porém, que poderá ajudá-lo. Matt não sabe, o que já é um bom começo, ele não sabe o que fazer com suas duas filhas. Elas estão bem vivas, dão muito trabalho. Ele não sabe o principal: o fato de que é amado por elas. O que ele fez para merecer isso? Não é tão fácil descobrir, dado que ele está imerso na culpa e na inércia quanto ao seu desejo.
            É assim que entra em cena uma personagem fundamental, Alexandra (a ótima Shailene Woodley), a filha mais velha de Matt King. Ela intervém da posição que nós, psicanalistas, definimos como histérica. O que isso quer dizer? Ela denuncia a impotência do pai, ela o provoca na tentativa de fazê-lo trabalhar como mestre pela questão que é a dela, a saber: o que o Outro deseja? Para isso revela ao pai que sua mãe o traía com outro homem. Essa menina não sabia disso por acaso. Ela é danadinha! Ela consegue um bom resultado com isso. Pela primeira vez Matt reage como alguém cujo sangue pulsa nas veias. Alexandra coloca entre ela e o pai um rapazinho que tem uma função pontual. Ela oferece ao pai um rival na medida. Ela também sabe que, pelas condições apresentadas pelo genitor, ele não suportaria nada maior e melhor do que um adolescente.
            Todavia, Matt e o rapazinho protagonizam uma cena muito interessante. O adulto convoca o adolescente a apresentar suas insígnias fálicas. O jovenzinho não se faz de rogado: _ “Jogo bem xadrez, toco guitarra e tenho erva”. Dá ainda um pequeno testemunho de como está se virando com a morte recente do pai morto num acidente de trânsito ao dirigir bêbado.
Disse-lhes que Alexandra está numa posição histérica, o que é diferente de afirmar que ela é uma histérica devastada. Longe disso. Ela percebe que o pai está em apuros: impotente, atrapalhado. Quem sabe querendo dar uma chance para ele ou por seu desejo de saber, ela o instiga na direção do amante da mãe, ela realmente parece querer saber algo sobre isso. O pai no lugar do corno a interroga, desnecessário dizer, inconscientemente. Muito embora o desejo de Matt (o pai), há tempos, já o traísse deitando com a morte.
O desfecho poderia ser patético, porém Matt lança mão de seu único recurso, justamente aquele que permitiu que suas filhas o amassem. Mesmo depois do fracasso do casamento, apesar de saber da traição da esposa, de realizar que tudo o que viveu com ela se concluía naquele desfecho, Matt não recuou, não dissimulou, não traiu o amor que finalmente descobria sentir por Elizabeth. O que ele revelou para as filhas naquele momento? Que um homem não é um completo idiota quando assume o seu amor, ainda que faltoso e impossível, por aquela a quem fez sua esposa. O ideal do amor fracassa para todos, mas o desejo empenhado e a perda imposta no luto daquele homem revelou o vestígio do que é possível frente ao impossível da realização do casal conjugal para os filhos. Ao sair de seu coma profundo, Matt pôde, enfim, encarar suas filhas.
Vale conferir!
15/02/2012

Não é uma bomba atômica

Enquanto os líderes do mundo ocidental estudam um bloqueio comercial ao Irã em decorrência de uma suposta produção de armas nucleares, chegam as nossas telas cópias de uma produção de baixo orçamento: Separação de Asghar Farhadi. Há gente pensando e produzindo coisas interessantes no Irã. Apesar do contexto controverso que se divulga a respeito desse país, há mais do que bomba, petróleo e tapete persa por lá.
Assim, não falo de uma bomba atômica, senão de uma trama que aborda questões que nos levam a refletir sobre temas universais e cotidianos. Não vou me adiantar afirmando que se trata do melhor filme do ano, como fez Artur Xexéo em sua coluna. Mas, é uma ótima oportunidade para verificarmos que as diferenças culturais não eliminam os traços humanos que se marcam nos falantes, seja aqui ou em qualquer parte do mundo, diante de seus conflitos existenciais.
O que é um casal? O que é a dita relação natural que une homens e mulheres desde os tempos das cavernas? Os animais, digo macho e fêmea, acasalam para preservar as espécies, mas que história é essa, a de que homens e mulheres façam o amor?
O filme começa com uma catástrofe, a separação. Toda a ordem das coisas é abalada por isso. Levem em conta que se trata de uma cultura em que a devoção e a submissão ao casamento, sobretudo da esposa em relação ao marido, está relacionada à Lei de Deus. Concordemos ou não com isso, é isso que entendemos logo no início do filme. Entretanto, li recentemente que há uma epidemia de pedidos de divórcios no Irã.
A separação irá trazer toda sorte de mazelas, desde o desamparo da infância e da velhice até a morte. A unidade conjugal segue a ordem de Deus. Quando isso fracassa o mundo daqueles personagens é profundamente afetado.
A governanta representa a posição das mulheres ajustadas aos valores religiosos e culturais dessa sociedade. Já Simin (Leila Hatami) é a voz das mulheres que questionam o instituído e anseiam por mudanças. Simin é uma mulher que quer agir conforme seu desejo. O que não significa que ela não ame o seu marido, não é isso. Ela quer amar o seu homem a sua própria maneira. A governanta ama a Deus, em nome de sua devoção a Deus é complacente com a sua miserável vida ao lado do marido quase arruinado. Quem dirá que não é uma forma possível de amar? O amor neurótico do sujeito pelo Outro.
A miserável governanta vem em socorro de um mundo sob catástrofe, com um filho na barriga, uma criança pela mão e um velho doente de Alzheimer para cuidar. O desamparo incide ali onde um casamento foi desfeito. Vocês sabem, o desamparo é um poço sem fundo. A governanta não tem nada mais para dar senão seu sacrifício.
Nader (Peyman Moadi) não pode abandonar seu pai. Paga o preço de ver Simin partir. O desejo dela está endereçado a um exterior, digo, a uma cena fora dali, daquela casa onde um homem não pode amá-la, pois quem responde é um filho endividado com seu pai. Aquele velho senil é o que resiste, é o resto que chega a chamar por Simin, que pede o jornal que não pode ler e que se urina. Alguém que impõe com sua presença e silêncio ser cuidado pelo outro, é puro resto. Mas, Nader encontra naquele quase nada de existência, a consistência de seu fantasma. O pai pode não saber que ele é seu filho, mas Nader sabe que aquele homem é seu pai. Carrega uma dívida, por isso não pode seguir com Simin, não pode fazer dela sua mulher, é isso que ela pede a ele. Simin sabe que nenhum Deus pode garantir isso.
Termeh (Sarina Farhadi), a filha adolescente do casal separado, fica com o pai, parece tentar salvá-lo de seus apuros. A jovem começa a perceber as dificuldades desse homem que é seu pai. Ela tentará agir na tentativa de ampará-lo. Há uma subversão da ordem das coisas quando Simin vai embora. A impotência de Nader faz com que Termeh passe da posição de filha a ser cuidada para outra em que sustenta o pai, tentativa de velar sua impotência.
A situação desencadeada na trama que levará os dois homens (Nader e o marido da governanta) ao tribunal descortinará as precárias condições dos mesmos. Dois homens humilhados e feridos em sua honra. Um por ter sido abandonado pela esposa, o outro por ver a própria esposa humilhada por aquele que foi deixado, tendo a governanta aceito o trabalho em segredo para justamente livrar o marido de seus credores.
Simin não quer a suposta verdade factual sobre o evento, ela sabe que algo da verdade está em outro lugar, ela sabe do desamparo que acometeu aqueles homens impotentes. Simin, com seu saber, quer proteger a filha da desgraça anunciada daqueles homens, pois teme que mais um ato violento venha a acontecer. Ela não espera mais que Nader possa se ocupar da posição que ela desejava para ele, a de um homem para ela. Simin deverá seguir sua vida, quer levar a filha com ela.
Tanto a pequena menina, filha da governanta, quanto Termeh, a adolescente, sabem mais do que podem dizer, por isso elas temem dizer o que sabem. Elas sabem alguma coisa que é o obsceno entre os casais: que não há a relação sexual. Elas vão aos poucos nos revelando que sabem algo sobre isso, mesmo “sem saber”.
Alguns não gostaram do final do filme, argumentam que não houve fim. Assim como Nader e Simin, ficamos esperando do lado de fora da sala do juiz a resposta de Termeh. O diretor usa muito bem alguns recursos do cinema, como a câmera que filma como se fossem nossos próprios olhos, a visão sofrendo a interferência do movimento dos nossos corpos, lentes que descortinam ambientes que nós mesmos penetramos, embora estejamos plantados na cadeira. Sim, ficamos esperando do lado de fora pela resposta de Termeh. Dê o seu palpite. Melhor, qual seria a sua? Até!
09/02/12