segunda-feira, 23 de julho de 2012

E aí comeu? Ou sobre o risível do medo de amar masculino


Sucesso de bilheteria, a sala estava quase lotada ontem. Todas as jogadas de marketing foram eficientes, contudo, o filme tem mesmo o seu valor. Despretensioso e com bom humor, a fita vale o ingresso.  Comecemos pela química que envolveu os atores e a amizade convincente que eles protagonizam. A amizade é aquilo que resiste aos imperativos de sucesso e enriquecimento a qualquer custo nos dias de hoje. Cachoeira e Demóstenes, por exemplo, não são amigos, me parece que isso é claro ou não? A amizade verdadeira passa por uma identificação pela dor, pelo sofrimento do qual um amigo se faz solidário ao outro. Os três personagens estão sofrendo, cada um a sua maneira, mas todos pelo mesmo motivo: amar as mulheres. “Heterossexual é quem ama as mulheres” _ define Lacan.
Desde Freud, sabemos que um homem precisa depreciar a mulher enquanto objeto amoroso para poder desejá-la. Daí o título do filme: E aí comeu? É quase uma mensagem cifrada que quer dizer: “Não vem com essa de pagar paixão”. Não se pode falar sério de amor, isso não cai bem para um homem. Mas, o bar é uma espécie de consultório sentimental dos machões, é um lugar sagrado e de encontro entre amigos. Ali, é possível chorar as mágoas. Contudo, a cumplicidade daqueles caras permite que eles se comuniquem num dialeto próprio, num linguajar que soa para as moças sentadas ao lado como grosseiro e chauvinista. Essa modalidade de discurso permite classificar, segregar e definir as mulheres de acordo com a lógica estritamente fálica e masculina. Isso interessa muito as frequentadoras de saias desses ambientes, mesmo quando elas se espantam com uma linguagem tão rala. Aqueles caras falam com muita propriedade sobre o assunto do sexo, sabem o que dizem, mas não sabem do que sofrem.
Um casado, um recém-separado e um solteiro: o que eles têm em comum? O medo de amar. O amor é para o homem a pior parte de uma mulher. Sim, os homens gostam das mulheres de forma fetichista_ peitos (siliconados ou naturais), bundas, pernas e coxas, ainda, sexos peludos ou desenhados por depilações. Desejam o que veem e amam o que não enxergam. Uma mulher para ser amada precisa ser decifrada. Tarefa impossível e insuportavelmente angustiante para um ser que prefere, muitas vezes, não recorrer às metáforas e ir diretamente e mecanicamente ao assunto.
Os diálogos são impagáveis e muito instrutivos, pois não venham com essa de que uma boa dose de preocupação e fundamentos sobre técnicas e funcionamento não ajudam! Homem que se preza (fiz o ato falho de escrever: homem que se preSa, o corretor de texto me salvou) não acredita que sexo é poesia. Fazer amor é poesia, diz Lacan. Mas, praticar o esporte exige sim manobras arriscadas e radicais, bom desempenho pelos relevos, curvas, caminhos e estradas de uma bela geografia. Um pouco de frase de bar: “Se Deus inventou algo melhor que a mulher guardou para ele”! Nesse caso, foi fantástica a presença do professor/garçom Seu Jorge no papel de um sósia de Seu Jorge. Os diálogos politicamente incorretos deram um tom espontâneo e verdadeiro às segregações quanto à raça, atributos físicos e, digamos, idiossincrasias dos parceiros sexuais.
Voltemos, entretanto, ao medo de amar dos homens, de que forma ele comparece na trama? Honório (Marcos Palmeira) é um sujeito experiente, é ele quem surge em primeiro plano e na primeira cena no banheiro masculino _ “o banheiro é a igreja de todos os bêbados (Cazuza)” _ apresentando os outros personagens. Ele é casado com Leila (Dira Paes) e com ela tem três filhas. Há a crise do casamento, o peso decorrente do tempo e das dificuldades sobre as diferenças. Eles estão afastados e não conseguem conversar, estão ressentidos. Honório num dado momento é tomado por um ciúme intenso, acredita que Leila possa estar lhe traindo. O ciúme é o sintoma de seu medo de amar, de dizer o quanto se importa com ela, o quanto a deseja.
Afonsinho (Emílio Orciollo Neto) é um cara que vive da grana do pai, adora palavras cruzadas, mas tem a ambição de ser escritor. Como escrever um romance, se nunca viveu um amor de verdade? Só conhece as mulheres através dos favores sexuais remunerados de prostitutas. Afonsinho quer que tudo acabe sempre numa suruba. É no fundo um sujeito que evita o amor por medo. Reduzir tudo a sexo comercial é sua estratégia.
Fernando (Bruno Mazzeo) acaba de se separar, está sofrendo. Todavia, algo dá a entender que, por alguma razão, não se empenhou para evitar o que parece ter sido uma separação precoce. Ele e Vitória (Tainá Muller) transparecem suas dúvidas e oscilações quanto à decisão tomada. Mas, Fernando deixa rolar, vacila por seu medo de amar.
Os inseparáveis amigos de mesa de bar seguem filosofando, teorizando e concluindo verdades sobre o incerto terreno das trocas amorosas e sexuais entre os sexos. O humor e o riso tornam possíveis abordagens divertidas e prazerosas sobre um tema tão espinhoso que é o da incompatibilidade entre os sexos. Lacan é mais definitivo ao afirmar que “não há a relação sexual”. O amor vem suprir, vem fazer suplência frente a esse impossível. Amar é a via para o outro sexo. Mas, se os homens temem o amor, como chegar ao continente feminino?
O filme mexe com o imaginário masculino e oferece ótimas saídas aos personagens. O roteiro é bem mais generoso quanto ao que Freud propôs como saída para o Édipo feminino. Fernando tem a chance de começar tudo de novo com a vizinha linda, dezessete aninhos, virgem, sexy e apaixonada. Enquanto isso, morremos de inveja, o ideal existe só para ele.
Afonsinho pôde realizar o fetiche mais comum e inconfesso dos homens: fazer da puta a mulher amada. Casar com a puta, possui-la na cama e no amor. Definitivamente, não há fetiche mais almejado do que esse.
Tudo na verdade é uma grande brincadeira, feita com bom humor. Talvez só Honório e Leila sejam de verdade. Um casal possível. Um casal que tem a chance de se reencontrar, mesmo que se percam depois. Mas que possam fazer isso enquanto o amor dure. Honório é o personagem que prova que um homem pode e deve amar sem garantias e sem medo. Leila faz tudo valer a pena. Ela é uma mulher possível. Deles não tenho inveja, pois há muitos anos divido essa difícil tarefa com uma mulher que me ensinou a não temer o amor. Dedico a ela este texto.

23/07/2012

Entre o mito e a verdade: um Raul no meio


Hoje cedo li a crônica do Xexeo sobre os dias nublados no Rio de Janeiro. Fiquei pensando sobre os tempos cinzentos que descolorem nossa atualidade. Vivemos um período sem grandes novidades, tudo parece já visto ou reeditado. Fiquei um tanto enjoado e entediado com mais uma semana que acabava de começar. Não contava com o que estava por vir.
Programação de cinema na mão e a boa surpresa ao saber que o filme de Walter Carvalho (Raul: o início, o fim e o meio) ainda estava no circuito. O final da tarde foi emocionante. Demorei a sair da sala de projeção, fiquei muito comovido. Ao concluir com o fim que é a morte, o diretor nos deixa com o meio: nem mito, nem verdade, mas o que ele nos faz entrever sobre um homem, seus parceiros, amores, músicas, a dor de existir, enfim, as coisas que tornaram Raul um genial e improvável roqueiro baiano apaixonado por Elvis Presley. O título do filme é uma sacada maravilhosa do diretor ao condensar Raulzito:

                                         Eu sou o início,
                                         O fim e o meio.

Seria ele uma metamorfose ambulante? Certamente, uma lhe ocorreu quando ainda era uma criança e se apaixonou por rock’ n roll. Se tudo começa do começo, Walter Carvalho faz referências ao começo de tudo, o contexto que acabaria por lançar aquele menino baiano no mundo. E aí um depoimento:
“O Rock não era contra o pai, mas algo que dava ao jovem uma virilidade com a qual o permitia se medir ao pai” _ não é exatamente isso, mas assim se transmitiu para mim.
O Rock é masculino, mas não existiria sem suas musas, nem sem Rita Lee, é claro! Mas o Rock é uma ereção, e isso, pelo visto, nem as bebidas e as drogas roubaram de Raul. Um menino de minha geração não poderia prescindir dos acordes voluptuosos de uma guitarra. Era Viagra na veia! É incrível como o diretor consegue arrancar juventude e frescor presentes nas expressões e depoimentos daqueles velhos companheiros de adolescência. Alguns, mesmo que castigados pelo tempo, ainda conservam traços da alegria e da beleza impressos em antigas fotografias. Mas não sejamos completamente românticos, a erótica do Rock é curiosa, a combinação de sexo, drogas e rock’n roll tem levado muita gente a um final melancólico.
Nasce Raul Seixas, o improvável roqueiro baiano, surgido das influências musicais de Chuck Berry, Little Richard e, sobretudo, Elvis Presley. Um inglês com sotaque baiano, golas puxadas para cima, atitude e talento fizeram o artista. Há muitas histórias, muitos risos e boas gargalhadas. É um momento muito pitoresco e contagiante do filme. Uma grande citação aos tempos, companheiros e parceiros que marcaram o percurso de Raulzito. Ele teve bons e inspiradores amigos, parcerias incríveis, como as com Cláudio Roberto.
Paulo Coelho não foi seu amigo, não no sentido próprio do termo. E não é necessário definir o que foi a relação entre eles. Walter Carvalho não foge das questões polêmicas, o que é fundamental é que ele não tem a pretensão de que elas sejam respondidas. O diretor sabe o que quer com suas lentes, se há algo que ele não quer é fechar a perspectiva para buscar a verdade no fundo. As perguntas interessam mais que as respostas. Nesse sentido, Paulo Coelho é bem interessante, seu depoimento é absolutamente distinto dos outros. Ele fala sem manifestar afetos, sem se comover e nem achar nada muito engraçado, a relação dele com o Raul foi o que foi, rendeu ótimas parcerias, se amaram e se odiaram. Sim, apresentou todas as drogas ao roqueiro. Sem problemas, Raul já era adulto. Como se dizer tudo isso, assim desse jeito, não tivesse grandes consequências. “Paul Rabbit”, como brinca Eduardo Dusek, me convencia. Até chegar ao primeiro momento estranho. Eis que no meio da entrevista, em Genève, pinta uma mosca. Paulo Coelho diz que não há moscas por lá, então, me pareceu que ele ficou “bolado”. Eu me perguntava se não era um efeito especial pensado pelo diretor. Contudo, imaginei o Walter Carvalho levando a mosca num vidrinho até a Suíça. Loucura, né?
Outro momento tenso da entrevista foi quando Paulo Coelho teve que responder a afirmação feita, por um seguidor de Aleister Crowley, de que Paulo Coelho jamais reivindicou a devolução de uma procuração sobre a gestão de sua alma deixada por escrito pelo próprio escritor a ele, seu mentor ocultista. O cara alega que seria necessária uma carta por escrito. O autor de Diário de um Mago propõe jocosa e nervosamente: _ “Não serve o abandono?”. Bom o cara é mago, quanto a mim, não deixaria uma procuração sobre minha alma com ninguém!
Pois é, Paulo Coelho se destaca de tudo que há no filme, e ficamos sem saber exatamente por que. E foi muito bom isso. Não era mesmo para se saber. Há algo que só eles viveram no auge da loucura, juventude e criatividade. Para que julgar? Pensei neste instante num trecho do Rock do Diabo:
Enquanto Freud explica,
           O diabo dá um toque.

Então, o espaço é aberto para os amores de Raul. Fiquei impressionado. O cara foi muito amado por suas companheiras (Glória, Tânia, Kika e Lena)! Edith, a primeira esposa, que havia se retirado de cena levando a filha do casal, Simone, se esquiva dos depoimentos. As outras, por alguma razão, mais generosas falam coisas surpreendentes. Em que sentido? Apesar de todo o sofrimento e drama acarretados pelo alcoolismo e a diabetes de Raul, aquelas mulheres o amaram profundamente. Até onde uma mulher se sacrifica para salvar o seu amor? E parece que estariam dispostas a ir mais além. São depoimentos belíssimos, mesmo em momentos até risíveis. As mulheres de Raul entenderam a sua alma, sua liberdade, seu drama, enfim, a sua loucura ou melancolia. Quanto aos filhos, eles aparecem através de suas mães, mais, no desejo delas por aquele homem. Fica, no entanto, o mistério sobre Edith e Simone, a filha que Raul se viu roubado.
O diretor aborda ainda a polêmica parceria com Marcelo Nova (Camisa de Vênus). Teria o citado músico se utilizado da frágil ou delicada situação de Raul para se projetar? Walter Carvalho abre o espaço para que a pressa não decrete a verdade. Cada um age por suas razões. Às vezes, o mal parece o bem, em outras, o bem sugere o mal. Paciência. Ninguém é tão santo ou diabo. Ou, cada um pinta seu santo ou diabo como quer.
O filme conta com as participações super especiais de Nelson Motta, Pedro Bial e Caetano Veloso. Walter Carvalho consegue diluir certezas, evitar julgamentos, manter questões em aberto. Não quer fazer consistir o mito, nem a verdade. Ele tem a visão sensível da obra que inclui o homem marcado por sua história, sua arte e dor de existir_ o humano.
Walter Carvalho reserva para o final uma grande questão sobre o artista. Raul tinha certa obsessão pela morte. Por um lado, parece que a proximidade dela lhe era libertadora, visto de outro modo, sua presença, por vezes, lhe era persecutória. Seu irmão conta que em certa noite Raul, ainda menino, o acorda com um medo intenso da morte. Conta este que o aconselhou um velho remédio: “_ Mano, bate uma bronha!”. Acho que Raul passou a vida negociando com a morte. Haveria ainda outra metamorfose? O alegre menino e improvável roqueiro baiano teria se transmutado em um homem melancólico e cedido definitivamente ao álcool e as drogas? O diretor, numa recente declaração, afirmou que Raul morreu de amor pela primeira esposa, não teria superado seu afastamento e o da filha. Isso teria sido decisivo para sua morte precoce aos 44 anos. Assim, o filme termina com um tango, uma de suas melhores obras: Canto Para A Minha Morte:

A morte, surda, caminha ao meu lado
E eu não sei em que esquina ela vai me beijar...
Vou te encontrar vestida de cetim,
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho que eu quero e não
desejo, mas tenho que encontrar
Vem, mas demore a chegar.
Eu te detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida
Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida.