quarta-feira, 13 de março de 2013

A loucura ou a Dama Real: estigma e arte

O jornal é meu amigo das manhãs, é com ele que quebro a rotina solitária de meu ofício. Além do mais, suas edições diárias me dão a sensação necessária de pertencimento e de localização temporal. Lendo suas páginas me reconheço como alguém situado em certo lugar e contexto. O problema é encarar as manchetes rotineiras sobre tragédias provocadas pela violência e brutalidade tão comuns. O Brasil é o oitavo país mais violento do mundo, não só colaboramos com seus altos índices como somos omissos diante dos números de mortes decorrentes de tal estado de coisas. Mas, ontem, o Segundo Caderno de O Globo deslocou a minha atenção para o assunto que anuncio no título, trata-se da relação entre a loucura e a arte. Quem não ouviu falar de Camille Claudel? Muitos se lembram dela como a amante louca de Auguste Rodin. Entretanto, Camille rompeu com o estabelecido para os padrões da época, pois não era comum que mulheres seguissem carreira nas artes, ela é um raríssimo caso de escultora que teve seu trabalho reconhecido. Ela pagou com o preço do estigma da loucura. Uma mulher que num dado momento foi invadida por pensamentos persecutórios tendo como figura central o seu amante: delírios de perseguição decorrentes de um amor de perdição, de uma paixão arrebatadora e erotômana por Rodin, O Mestre. As mãos que esculpiram obras como La valse (A Valsa) e L’Âge Mûr (A Idade Madura) revelam, no entanto, algo que se constrói apesar de ou pela própria loucura que busca se expressar, resultando numa bela obra. Esculturas cuja visão provoca um turbilhão de sensações impressionantes no espectador. Quem já foi ao Museu Rodin ou ao d’Orsay sabe do que estou falando. Camille não se tornou uma artista reconhecida apenas porque pretendia sê-lo, mas por modelar com suas mãos a matéria amorfa de toda sua dor e sofrimento decorrentes de seu amor de perdição, transformando o bruto em belo. Um desejo indestrutível a libertava em sua arte e, ao mesmo tempo, a alienava em sua paixão ao Mestre-Amante. Sua arte e seu delírio talvez tenham sido tentativas distintas de se separar. Felizmente, sua obra transcende ao estigma e aos trintas anos de exclusão, reclusão ou clausura. A artista não pode poupar a mulher devastada pela visita da Dama Real. Somos sempre atraiçoados pela proximidade das damas advindas do real: a morte e a loucura. A loucura e a morte não poupam o lúcido nem o precavido, talvez elas os escolham primeiro. A loucura, antes de possuir Camille, lhe deu a chance de expressar seu sofrimento, sua dor e sua bela obra. Talvez, não tenha sido a loucura que a confinou, mas o estigma. Mais além de sua história familiar e da paixão devastadora, Camille encontrou em seu olhar profundo e em suas mãos penetrantes um meio de erguer sua obra. A loucura, Dama Real, não a condenou ao estigma, senão que a permitiu a dignidade e beleza de sua eterna arte. Contudo, arrastou a mulher perdida de amor para o deserto do real inapreensível. As suas esculturas, por isso, até hoje nos provocam o fascínio e o estranho de sentir nosso familiar vazio: “Há sempre algo de ausente que me atormenta (Camille Claudel)”. Rio, 12/03/2013.

terça-feira, 5 de março de 2013

Pornografia e erotismo

Escrevi recentemente sobre a Sick-Lit ou a Literatura enferma cujos protagonistas são adolescentes deprimidos, suicidas, anoréxicos e etc. Ontem, no Segundo Caderno de O Globo, o autor do recém-celebrado Barba ensopada de sangue, Daniel Galera, nos indicou o romance da canadense Tamara Faith Berger: Maidenhead (inédito no Brasil). O romance gira em torno da submissão sexual de Myra, uma jovem de dezesseis anos, fascinada por Eliajah, um músico africano bem mais velho. Galera cita Bataille e Sade, mas dá destaque para a pornografia engajada da atriz Sasha Grey. Eu não gostaria de reproduzir a coluna de Galera. O objetivo desse pequeno comentário é dividir com vocês uma questão suscitada por minha leitura em articulação com o que chamei, em meu último texto, de uma literatura comercial erótica: qual a fronteira entre pornografia e erotismo? Nem sempre foi evidente esse limite. A internet tratou de separar definitivamente esses campos. Muitos garotos não tiveram a sorte de folhear as famosas e picantes revistas suecas ou dinamarquesas nos Anos 70. Hoje, a pornografia disponível na rede para o onanismo privado e desenfreado faz todo o esforço dos meninos daquela geração parecer uma piada. A pornografia hoje está associada ao uso, comércio e franquia de imagens e filmes de sexo e nudez explícitos (seria o caso de um pleonasmo? Tenho dúvidas). Galera fala de uma pornografia engajada em Sasha Grey, pois ela vê o pornô como ato político. O romance de Berger, segundo Galera, toca na questão das diferenças, segregações e conflitos. O colunista não põe esta obra, definitivamente não, dentro da categoria de livros comerciais eróticos. Contudo, o relaciona ao paradigma de Grey, a atriz político-pornô. Permanecemos, assim, próximos dos paradigmas do pornográfico. E o erotismo? Qual a fronteira entre pornografia e erotismo_ repito? O erotismo presente desde muito cedo nas obras de arte não se reduz à representação ou reprodução da cena da cópula, do ato ou do sexo. O erotismo não se reduz ao explícito, mas, ao contrário, àquilo que não se dá a ver, ao que se insinua ou ao enigmático. A erótica de Freud afirma-se dessa maneira. Ele jamais reduziu a subjetividade à mecânica do sexo. Freud ousadamente nos interroga sobre o sexual: do que goza o sujeito? Ele introduz a dimensão fundamental da fantasia. O erotismo talvez não interrogue o onanista, entretanto, interroga o espectador de uma obra de arte ou o leitor de um romance. O enigma talvez esteja presente na pornografia e no erotismo, porém, na pornografia está a serviço do uso, do “goza”, no erotismo, sim, o enigma cava um furo sobre o qual será tecida a fantasia. Outrora, eu tive a sorte de folhear umas revistas suecas, contudo, fui mais afortunado ao me surpreender com um não saber, com o enigma sobre o sexual. 05/03/2013

Letras enfermas: por que não?

O segundo Caderno de O Globo do dia 21/02 trouxe uma interessante matéria sobre o sucesso da Sick- Lit (Literatura Enferma). Depois dos vampiros, lobisomens, fadas, duendes e hobbits entram em cena jovens suicidas, deprimidos ou acometidos por doenças terminais; ainda,adolescentes anoréxicos e automutilados. Histórias e livros que estão fazendo a festa de vendas das editoras. O mesmo acontece no cinema com a adaptação desses dramas para as telas. Entre os diversos títulos destacam-se “A culpa é das estrelas” (Editora Intrínseca) de John Green e “As vantagens de ser invisível” (Editora Rocco) de Stephen Chbosky. É interessante como esse fenômeno vem na contramão da euforia ou mania das redes sociais que parecem revelar a vida intensa, colorida e alegre dos jovens. Os adolescentes se gabam de listas enormes de amigos. As fotos no Instagram revelam invariavelmente gente bonita, de bem com a vida, fazendo coisas interessantes. O que há, então, por detrás das redes sociais? As companhias e multidões do mundo virtual parecem encobrir, em muitos casos, a solidão e angústia de um adolescente. Um jovem geralmente é só em seu sofrimento, ele tem vergonha ou não sabe como expressar seus sentimentos diante de impasses, conflitos e desafios. “O despertar da primavera” traz consigo não só o colorido e o prazer das novas descobertas, mas o pesadelo do real, das experiências inéditas e angustiantes de um garoto ou garota: convocações sociais; iniciação sexual e contato com álcool e drogas. O tema da morte é, de repente, ligado ao sexo. A experiência sexual evoca a morte, pois o gozo obtido se revela breve e inapreensível. O paraíso prometido ou esperado não se realiza. Essa matéria sobre a Sick-Lit me remeteu ao caso de alguns adolescentes que escuto em análise ocupados com textos constituídos por eles mesmos cujos temas estão associados à literatura noir. Justamente nessa semana, um deles me relatou estar debruçado sobre um conto em que o personagem principal, sem saber, estava envolvido com uma garota com dupla personalidade. A trama trata de uma série de eventos estranhos, angustiantes e perversamente eróticos que envolvem o triângulo amoroso composto, no entanto, por dois personagens: o rapaz e a moça de dupla personalidade. Ele expressou seu desejo de que tal história pudesse fazer parte de uma publicação sobre contos fantásticos ou de suspense, organizados sob o título: Noites, cigarros e cervejas. Caso ele venha realmente a publicá-lo no futuro, quem sabe o avisarei que cometi uma quebra de pacto de sigilo argumentando, no entanto, que meus motivos não eram fúteis. Mas não importa, a função analista não dura para sempre. Essa minha digressão é para concordar com o ponto de vista do colega psicanalista Luiz Fernando Gallego que não atribui a essa modalidade literária a responsabilidade por desfechos nefastos. Afirma ele: “O que um livro pode fazer é antecipar um sentimento que já está lá dentro da pessoa. Mas o livro não é a causa de uma depressão”. Penso que a chamada literatura enferma permita que jovens possam encontrar maneiras de significar e expressar sentimentos desconhecidos, invasivos e tão intimamente ligados à ideia da morte. Não se trata de advogar pela qualidade literária dessas obras, mas de reconhecer sua função. Vejamos o exemplo dos livros de teor perverso e erótico que estão fazendo tanto sucesso nas prateleiras das livrarias. O que chega a minha clínica é que, apesar dos clichês de narrativa e da qualidade questionável dos textos, eles estão mexendo com as fantasias e comportamentos dos casais. Essas histórias recheadas de cenas e situações picantes, excitantemente perversas, acabam por reintroduzir os casais nas suas questões e dificuldades sexuais. Em muitos casos, eles reaproximaram homens e mulheres adormecidas e indiferentes. O sexual voltou à cena para a perplexidade de sujeitos que não ousavam mais fantasiar com seu parceiro ou parceira. Um analisando me confidenciou jocosamente que a leitura da esposa trouxe ótimas consequências para ele que não leu uma página se quer. Esse é um aspecto interessante dessa literatura de consumo e entretenimento. Não é um remédio para tudo ou para todos, mas concorre certamente com pílulas para dor de cabeça. As letras enfermas permitem uma identificação do jovem leitor com esses personagens tão diferentes das redes sociais, pois os depressivos, os anoréxicos, os automutilados são os excluídos, habitam um submundo a parte. Contudo, em algum momento de solidão, qualquer adolescente pode sentir na própria pele esses afetos mórbidos e estranhos. Essa modalidade de literatura pode não ser o fim, mas o meio pelo qual um jovem consiga pedir ajuda. Talvez, uma maneira de perceber que sua angústia e sofrimento vividos solitariamente e de modo particular decorrem de situações e contextos compartilhados com outros jovens. Então, por que não? Que as letras enfermas possam ser tomadas por aqueles que busquem não sucumbir às dores da alma e à morte precoce. Se hoje, no mundo virtual, navegar é preciso, viver é uma escolha que inclui o real. Nesse sentido, o imaginário e o simbólico presentes nas histórias dão suporte ao que se precipita na carne, corpo ou pele de um jovem. Quem sabe aí a letra não mais se represente enferma, senão como marca da falta que funda o desejo? 05/03/13

domingo, 17 de fevereiro de 2013

O Futuro de uma ilusão

Foi justamente durante a festa profana, estabelecida pelo calendário católico, que o Papa Bento XVI tornou pública a sua renúncia. Confesso que recebi tal notícia com certa inquietude. É certo que Bento não dispunha do mesmo carisma que João Paulo II e enfrentava um momento conturbado de sua Igreja_ uma série de escândalos vem abalando a imagem e a reputação da mesma. Freud, em o Futuro de uma ilusão, já nos apontava o fracasso da religião e dá fé em um Deus suposto onisciente e onipresente diante do desamparo como condição humana. O desejo por um pai presente, forte e protetor decorre de uma ameaça e sentimento infantil. O monoteísmo Judaico-Cristão seria a síntese, ou mesmo, a forma mais completa de se constituir esse Deus/Pai_ Um Pai Todo Amor. Lacan diferentemente afirmara o triunfo da religião, a verdadeira religião Judaico-Cristã, em detrimento das ciências. A verdadeira religião ofereceria, segundo ele, respostas e saídas imaginárias para as inquietações do homem. A religião propõe um mundo que se organiza e funciona em torno da figura de um Deus onipresente. As ciências, ao contrário, se ocupariam com o real, com “aquilo que não funciona”. Talvez, isso nos soasse como provocação: o que a psicanálise poderia formular e fazer operar frente aos impasses de “um real que não cessa de não se inscrever” _ o imundo? O Papa Bento XVI, ao repetir um ato ocorrido pela última vez há seiscentos anos, nos recoloca diante de um desamparo. Estamos sozinhos e imersos em nossas pretensões narcisistas. Ele revela em seu último discurso uma hipocrisia religiosa. A Igreja estaria desfigurada por suas divisões que ferem a sua unidade. Bento fala do triunfo da individualidade e da rivalidade, alega predominar as ambições pessoais, o desejo por poder, aplausos e aprovação. A Igreja esbarrou ainda em questões complexas como o controle de natalidade, o uso de preservativos e o casamento gay; ainda, nas denúncias de pedofilia e abusos sexuais cometidos por seus sacerdotes. O Deus Todo Amor foraclui a dimensão sexual do desejo do pai. A transmissão da lei como o legado de um pai porta a dimensão real de seu desejo, o sexual atravessado por um impossível ou, de forma freudiana, pela castração. Se essa castração paterna está foracluída na figura desse Deus Todo Amor, o que se pode esperar? Lacan e Freud viam na religião uma proteção contra o real, contra aquilo que não funciona. Freud não tinha quanto à religião esperanças, Lacan, como eu, sofreu forte influência dos Beneditinos, uma Ordem muito rigorosa e forte entre os católicos. Seu irmão era um monge formado nas tradições da citada Ordem constituída, coincidência ou não, pelo eremita e santo: São Bento. Mas, Lacan não se tornou um monge. Foi solitário em certos momentos, sendo levado por isso a convidar os seus ouvintes a encontrá-lo no deserto. Lacan, ao radicalizar a descoberta freudiana, contribuí com sua invenção, o Real. Há um ingovernável no mundo, no sexual. Bento XVI, ao renunciar, ratifica o declínio e a fissura da unidade da Igreja Católica. Será? Tanto menos pelo próprio Cristianismo em si, que porta princípios e valores cruciais a sustentação da Igreja que ele visa resgatar. Então, seria mais pelas vicissitudes decorrentes do convívio com a imagem e com os símbolos ostentados pela Igreja Romana: poder; ganância e riqueza. A visita ao Vaticano me provocou afetos bem ambíguos. O belo representado na arte dedicada a Deus, à história e passagens bíblicas pintadas por grandes artistas. A Capela Sistina é uma das coisas mais incríveis criadas pelo homem. Ao mesmo tempo, toda aquela riqueza ali guardada me oprimia, me deixava tão afastado do que é mundano, da condição humana. A rachadura detectada na Igreja de Pedro tem levado uma multidão de ávidos e alienados pela fé cega às igrejas oportunistas. Aqui no Brasil, esse fenômeno é facilmente observável. O que estamos em condições de oferecer como alternativas à servidão e a cegueira que submetem fiéis à autoridade e poder de sujeitos como Silas Malafaia? Não quero discutir em termos da boa ou da má religião, pois todas elas operam velando o real e o ingovernável da vida psíquica. O que a psicanálise oferece como alternativa ao sofrimento? Essa é a discussão que deve estar à frente de nossos títulos e créditos. 14/02/2013

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

O amor nos limites da vida

“O corpo é o cárcere da alma”, afirmavam os gregos. É improvável que os jovens gastem tempo refletindo sobre isso. A energia, potência, vigor, agilidade dão a eles a sensação de que vestem uma máquina ilimitada em recursos. Além do mais, seus dedos e olhos viajam por uma realidade virtual sem fim. Seus sentidos, emoções e raciocínio alcançam velocidades fabulosas. Quem pode ver problema na juventude? Finalmente, consegui chegar a tempo de assistir à única sessão diária de Amor, o filme inquietante de Michael Haneke. Depois de uma abertura que já anunciava o que estaria por vir, a câmera se projeta sobre uma plateia no interior de um grande teatro. Por alguma razão que me escapou, fui invadido por um mal-estar. Levei minha mão direita ao pulso esquerdo, mas meus batimentos pareciam normais. Não era por acaso que a trama começava a ser contada daquela maneira, digo: com a câmera naquele plano. O diretor nos incluía definitivamente no ambiente daquela narrativa. Entretanto, esse não foi o seu único truque. Ele se utilizou, muitas vezes, de um tempo que parecia interminável na apresentação da cena pretendida. O tempo que se arrasta depois da velocidade da juventude. Do mesmo modo que parava a câmera em alguns ângulos e objetos específicos, como o modo de filmar a pia da cozinha cheia de louças, por exemplo. “Os objetos são inertes, têm significado apenas em função da vida de quem os utiliza”, afirma Paul Auster em O inventor da solidão. Haneke nos fazia respirar decididamente o ar daquele ambiente. Só então, descobri o motivo de minha súbita angústia, estava dentro da trama. Havia ao meu lado um casal que beirava os setenta. O senhor estava muito agitado se mexendo na cadeira, cochichando no ouvido da esposa e rindo nervosamente. Ele me parecia absolutamente identificado ao marido na trama, e eu, pior, me identificava a ele, como se ele me dissesse tal qual o antigo comercial: “Eu sou você amanhã”. O tempo a passar estava me espreitando, aguardando para subitamente me lembrar de que eu já estava velho e era refém de meu débil corpo e agilidade. O amor é uma loucura. Não há razão no amor. O corpo envelhece, mas o amor enlouquece. Há uma fase em que ele nos rende um bom sintoma, ele nos conduz ao outro, abre a possibilidade de que o sujeito não se baste, que experimente a falta e um desejo que não se reduz a si próprio. Numa boa hipótese, é claro! Depois do que acabo de escrever e empurrar para vocês, um otimismo é o mínimo que lhes posso oferecer. Há um casal, eles estão a muitos anos juntos, ambos são musicistas. Georges e Anne compartilham a rotina, a cumplicidade de anos e o gosto pela música. A doença de Anne os leva a um derradeiro pacto. Ela o faz prometer que ele não permitirá que ela retorne ao hospital. Ela sabe que ele o fará. Ela talvez não fizesse o mesmo por ele, mas como saber? O que vamos ver a partir daí é o amor como loucura de dois visando o Um. O amor de Georges é o dois que visa o Um. Não há espaço para terceiros, é permitida a presença limitada de uma enfermeira. Fora isso, é um mundo habitado por duas criaturas nos limites de suas vidas. A existência do casal pesa nos corpos que aprisionam suas almas. Georges e Anne vivem os últimos e sufocantes fôlegos de um louco amor. Quando digo louco é porque quero afirmar que o amor é a desrazão que nega a impossibilidade do Um. O ato de Georges é uma última prova de amor ou de sua impossibilidade no mais profundo limite da vida? Se eu pensar na pomba que ele liberta após seu ato, posso ver no seu gesto algo libertador. Contudo, se me baseio na pequena história que ele conta para acalmá-la, antes de seu ato, faço outra leitura. Pois é a história de um menino e a insuportável separação de sua mãe. Anne depois disso se tranquiliza, me pareceu, ele, no entanto, se decide quanto ao ato. Ele não pode salvá-la com seu amor e dedicação. Ela está por um fio, sua vida se esvai. O que ele não suporta? Eu creio que ele precisa dela para viver, e não o contrário. Georges me parece mais dependente, mesmo levando em conta a situação de Anne. Ele, com seu ato, parece lhe ter para sempre. Sempre é um termo ou modo de driblar o impossível. Os contos de fada terminam invariavelmente com o tal: “E foram felizes para sempre”. Haneke vem nos trazer a loucura do amor neste encontro sempre fadado ao impossível. Os corpos consumidos e deteriorados pelo tempo teimam em aprisionar as almas, as impedindo da liberdade prometida do verdadeiro amor. Amar é um ato insano e necessário. Não há a menor esperança, dois seres não realizam o encontro do Um. Georges com seu ato mumifica o amor, um amor do qual não pode se separar. Ele não, talvez ela sim. Ressalto, para terminar, as belíssimas interpretações de Emmanuelle Riva e Jean-Louis Trintignant. Vejam o filme. 07\02\13

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Mostrar as curvas sim, mas sem perder a elegância

Ontem, saí do consultório por volta das cinco da tarde para um rápido lanche. Percebi a proximidade do Carnaval nas calçadas de Ipanema. Muitos turistas, moças belas com saídas, cangas e biquínis; rapazes malhados, com ou sem camisetas, na companhia de outros rapazes sarados e músculos expostos. A agitação e a sensualidade anunciavam com certa antecedência a festa profana, antes mesmo de sua abertura pelo Rei Momo. Mais um Carnaval! Haverá algo diferente? É comum se dizer que no Brasil o ano só começa depois da Quarta-feira de Cinzas. Lembrei-me imediatamente de uma animada conversa travada, durante a Festa de Natal, entre mim, um primo mais jovem e sua animada esposa. Ela manifestava seu desejo de participar, nem que fosse num só dia, do carnaval de rua: blocos, bandas e coretos. Ele, contrariado, reclamava da bagunça, da sujeira e do odor de urina que o impedem de circular entre o Leblon e Ipanema durante a folia. Tentando socorrer ou defender o anseio da jovem esposa, argumentei que a manifestação popular era histórica e culturalmente legítima, portanto, gozava do direito de tolerância ou até de exceção contra os direitos privados. Ponderei que havia certa incompatibilidade entre o carnaval e a Ordem Pública. Meu primo refutou tecnicamente minha tese. Eu adorei aquilo e dei boas risadas. Foi muito agradável. Por gozar de certa respeitabilidade como primo mais velho, saí com a promessa de que ele, mesmo contrariado, levaria sua carnavalesca esposa a um bloco. Apesar do respeito, ele me dirigiu palavras nada amistosas. Mas tudo com muito amor! Apesar de defender a folia, a multidão e o imenso bloco de bagunça, barulho e lixo que acompanha a festa popular, cabem-me, aqui, algumas observações. A força popular e rítmica do samba é contagiante e própria de nossa terra; temos, ainda, uma incompreensível vocação para a alegria; de quebra, somos orgulhosos de nossos dotes e qualidades. Durante o Carnaval, não tem pobre nem rico, nem moços ou velhos_ tudo se mistura. Entretanto, certo senso crítico é necessário. Detrás da alegria e do orgulho pode haver um complexo de inferioridade. Afinal, vendemos um produto que, muitas vezes, não nos traz boa reputação. Há no Brasil um turismo sexual e “exótico”. Muitos vêm procurar aqui aquilo que é banido ou rejeitado em seus lugares de origem: prostituição; subserviência; miséria; violência; macaco e selva. Como se chegassem motivados pela propaganda negativa: “No Brasil, se pode tudo, é uma esculhambação”. E o pior é que parecemos, de fato, nos identificar com isso, o tal “jeitinho brasileiro”. Todos ganham o seu tostão, porém, quando a folia acaba os problemas crônicos de nossas cidades continuam. Não quero falar contra o Carnaval, há uma irresistível vocação popular, artística e criativa em nossa festa profana. Há algo de genuíno ou autêntico: “Não se aprende o samba no colégio”. Ele está no sangue, na veia, e se expressa quando a festa começa, quando os tambores arcaicos rufam em nossos corações. Isso é muito bacana, a identidade simbólica de um povo. Mas, por favor, não vamos confundir manifestação popular com baixaria; sensualidade com o expor “os fundilhos”; brincar e pular o carnaval com vandalismo e descaso pela Coisa Pública. Não sejamos os primeiros a jogar contra o patrimônio. Não se enganem com as autoridades, eles não estão nem aí, choque de ordem é perfumaria. O que eles querem é encher os próprios bolsos. Nós é que devemos ser bons, alegres e elegantes anfitriões. “Não estamos com a bunda exposta na janela pra passar a mão nela” _ como cantava Gonzaguinha. Não vamos vender nossa dignidade e riqueza a preço de banana. Ou somos, afinal, a República das Bananas? O Carnaval não é dos bêbados, viciados, marginais, putas e viados, senão de cidadãos que podem exercer sua liberdade, alegria e diferenças de uma maneira brasileiramente digna. O Rio de Janeiro tem uma linda silhueta, vamos mostrar as curvas, mas não precisamos apelar para o desespero ou sentimento de inferioridade. O samba e o carnaval são patrimônios nacionais. Vamos valorizar essa riqueza. Eu termino apelando ao poeta: “Vamos fazer um carnaval legal Sambar é nossa tradição É bom se segurar que a Mangueira vem aí” Fui. 02/02/2013

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Aspirinas, antiácidos e Woody Allen

Feliz 2013! Andei muito ausente do meu blog, passei os últimos tempos ocupado com um projeto que pretendo fazer sair do papel, pois, finalmente, concluí um romance sobre o qual estive debruçado por muito tempo. Agora é tentar publicá-lo. Começamos mais um ano. Eu retorno ao blog lhes indicando um filme que desce como remédio de avó, ou seja, sem drogas, seus componentes são simples como um chá de ervas preparado com carinho, porém muito saboroso. Engraçado eu começar pela avó, sofri com a perda da minha durante todo o ano de 2012, agora pude lembrar e falar dela como uma coisa boa que adoça a boca e a vida. Ela está profundamente em meu coração. Então, e o filme? Ah! Claro! É Paris – Manhattan de Sophie Lellouche. Quando a receita é Paris, Cole Porter e Woody Allen é preciso fazer algo muito ruim para dar errado. Não é o caso de Lellouche, ao contrário, ela é bem hábil nas doses. Uma ótima comédia ao melhor estilo francês. Comece o ano pelo filme, eu o receito, assim como o chá da vovó. Você vai sair com o coração um pouco mais doce. Precisamos de doçura nos dias de hoje. Necessitamos voltar a dar suspiros diante de cenas românticas. Urge que possamos rir de nossas tolas e pequenas bobagens. Rir ainda é o melhor remédio, “mas rir demais é desespero”, por isso “desejo que você tenha a quem amar” _ Obrigado, pela cola, Frejat! Alice (Alice Taglioni) não é a do País das Maravilhas, não, definitivamente ela não. Ela, babem, tem em seu quarto (no seu mundinho particular) Shakespeare, Cole Porter por Louis Armstrong e um Woody Allen privado. Um pôster na parede que fala com ela, não é o máximo? Alice é uma bela mulher, solteira, farmacêutica e apaixonada pelo diretor e seus filmes. Herdou a farmácia do pai _ um sujeito que se define como uma boa mãe judia. A mãe, propriamente, tem problemas com álcool. Os pais se preocupam com o fato de que a moça ainda esteja solteira e, também, com a situação do casamento da outra filha. Apesar das loucuras que eles protagonizam, ou até mesmo por isso, são bem normais. A normalidade francesa é bem distinta da americana. Paris não vai à Manhattan, mas Manhattan vem à Paris. Woody Allen é nova-iorquino, mas é um judeu que conhece a normalidade francesa. Ele sempre soube fazer rir extraindo o melhor da loucura, da neurose cotidiana. O diretor adora a Psicanálise e, por isso, debocha dela de forma muito competente. “Sexo e boa escolha profissional”, diz o Woody Allen particular de Alice a ela mesma, como uma receita freudiana. Alice, por sua vez, não receita calmantes, nem aspirinas ou antiácidos, senão os filmes de seu mestre. Ela acredita que eles possam curar as dores do corpo e da alma. A diretora, Sophie Lellouche, faz em algumas passagens ótimas citações de filmes de Allen. “Sexo e boa escolha profissional” são, sem dúvida, ótimas receitas, entretanto, sabemos que essas coisas passam pelos desfiladeiros das demandas de amor. Ah! O amor! Os franceses sabem fazer boas coisas com ele, inclusive comédia. Porém, Lellouch homenageia ao mesmo tempo em que convoca Woody Allen e o seu savoir faire sobre o humor. O resultado é uma delícia. Temos ainda Victor (Patrick Bruel) um personagem crucial na trama. Um sujeito que ganha a vida instalando alarmes e dispositivos de segurança. É um improvável candidato para Alice. Além do mais, ela está saindo com um príncipe encantado. O amor tem suas surpresas e armadilhas. Victor é a cereja do bolo; é a azeitona da empada que dá um ótimo toque na comédia. Definitivamente, Paris é lindo, o amor é indispensável e cinema fundamental... 11/01/13