terça-feira, 5 de março de 2013

Letras enfermas: por que não?

O segundo Caderno de O Globo do dia 21/02 trouxe uma interessante matéria sobre o sucesso da Sick- Lit (Literatura Enferma). Depois dos vampiros, lobisomens, fadas, duendes e hobbits entram em cena jovens suicidas, deprimidos ou acometidos por doenças terminais; ainda,adolescentes anoréxicos e automutilados. Histórias e livros que estão fazendo a festa de vendas das editoras. O mesmo acontece no cinema com a adaptação desses dramas para as telas. Entre os diversos títulos destacam-se “A culpa é das estrelas” (Editora Intrínseca) de John Green e “As vantagens de ser invisível” (Editora Rocco) de Stephen Chbosky. É interessante como esse fenômeno vem na contramão da euforia ou mania das redes sociais que parecem revelar a vida intensa, colorida e alegre dos jovens. Os adolescentes se gabam de listas enormes de amigos. As fotos no Instagram revelam invariavelmente gente bonita, de bem com a vida, fazendo coisas interessantes. O que há, então, por detrás das redes sociais? As companhias e multidões do mundo virtual parecem encobrir, em muitos casos, a solidão e angústia de um adolescente. Um jovem geralmente é só em seu sofrimento, ele tem vergonha ou não sabe como expressar seus sentimentos diante de impasses, conflitos e desafios. “O despertar da primavera” traz consigo não só o colorido e o prazer das novas descobertas, mas o pesadelo do real, das experiências inéditas e angustiantes de um garoto ou garota: convocações sociais; iniciação sexual e contato com álcool e drogas. O tema da morte é, de repente, ligado ao sexo. A experiência sexual evoca a morte, pois o gozo obtido se revela breve e inapreensível. O paraíso prometido ou esperado não se realiza. Essa matéria sobre a Sick-Lit me remeteu ao caso de alguns adolescentes que escuto em análise ocupados com textos constituídos por eles mesmos cujos temas estão associados à literatura noir. Justamente nessa semana, um deles me relatou estar debruçado sobre um conto em que o personagem principal, sem saber, estava envolvido com uma garota com dupla personalidade. A trama trata de uma série de eventos estranhos, angustiantes e perversamente eróticos que envolvem o triângulo amoroso composto, no entanto, por dois personagens: o rapaz e a moça de dupla personalidade. Ele expressou seu desejo de que tal história pudesse fazer parte de uma publicação sobre contos fantásticos ou de suspense, organizados sob o título: Noites, cigarros e cervejas. Caso ele venha realmente a publicá-lo no futuro, quem sabe o avisarei que cometi uma quebra de pacto de sigilo argumentando, no entanto, que meus motivos não eram fúteis. Mas não importa, a função analista não dura para sempre. Essa minha digressão é para concordar com o ponto de vista do colega psicanalista Luiz Fernando Gallego que não atribui a essa modalidade literária a responsabilidade por desfechos nefastos. Afirma ele: “O que um livro pode fazer é antecipar um sentimento que já está lá dentro da pessoa. Mas o livro não é a causa de uma depressão”. Penso que a chamada literatura enferma permita que jovens possam encontrar maneiras de significar e expressar sentimentos desconhecidos, invasivos e tão intimamente ligados à ideia da morte. Não se trata de advogar pela qualidade literária dessas obras, mas de reconhecer sua função. Vejamos o exemplo dos livros de teor perverso e erótico que estão fazendo tanto sucesso nas prateleiras das livrarias. O que chega a minha clínica é que, apesar dos clichês de narrativa e da qualidade questionável dos textos, eles estão mexendo com as fantasias e comportamentos dos casais. Essas histórias recheadas de cenas e situações picantes, excitantemente perversas, acabam por reintroduzir os casais nas suas questões e dificuldades sexuais. Em muitos casos, eles reaproximaram homens e mulheres adormecidas e indiferentes. O sexual voltou à cena para a perplexidade de sujeitos que não ousavam mais fantasiar com seu parceiro ou parceira. Um analisando me confidenciou jocosamente que a leitura da esposa trouxe ótimas consequências para ele que não leu uma página se quer. Esse é um aspecto interessante dessa literatura de consumo e entretenimento. Não é um remédio para tudo ou para todos, mas concorre certamente com pílulas para dor de cabeça. As letras enfermas permitem uma identificação do jovem leitor com esses personagens tão diferentes das redes sociais, pois os depressivos, os anoréxicos, os automutilados são os excluídos, habitam um submundo a parte. Contudo, em algum momento de solidão, qualquer adolescente pode sentir na própria pele esses afetos mórbidos e estranhos. Essa modalidade de literatura pode não ser o fim, mas o meio pelo qual um jovem consiga pedir ajuda. Talvez, uma maneira de perceber que sua angústia e sofrimento vividos solitariamente e de modo particular decorrem de situações e contextos compartilhados com outros jovens. Então, por que não? Que as letras enfermas possam ser tomadas por aqueles que busquem não sucumbir às dores da alma e à morte precoce. Se hoje, no mundo virtual, navegar é preciso, viver é uma escolha que inclui o real. Nesse sentido, o imaginário e o simbólico presentes nas histórias dão suporte ao que se precipita na carne, corpo ou pele de um jovem. Quem sabe aí a letra não mais se represente enferma, senão como marca da falta que funda o desejo? 05/03/13

Nenhum comentário:

Postar um comentário