quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

O amor nos limites da vida

“O corpo é o cárcere da alma”, afirmavam os gregos. É improvável que os jovens gastem tempo refletindo sobre isso. A energia, potência, vigor, agilidade dão a eles a sensação de que vestem uma máquina ilimitada em recursos. Além do mais, seus dedos e olhos viajam por uma realidade virtual sem fim. Seus sentidos, emoções e raciocínio alcançam velocidades fabulosas. Quem pode ver problema na juventude? Finalmente, consegui chegar a tempo de assistir à única sessão diária de Amor, o filme inquietante de Michael Haneke. Depois de uma abertura que já anunciava o que estaria por vir, a câmera se projeta sobre uma plateia no interior de um grande teatro. Por alguma razão que me escapou, fui invadido por um mal-estar. Levei minha mão direita ao pulso esquerdo, mas meus batimentos pareciam normais. Não era por acaso que a trama começava a ser contada daquela maneira, digo: com a câmera naquele plano. O diretor nos incluía definitivamente no ambiente daquela narrativa. Entretanto, esse não foi o seu único truque. Ele se utilizou, muitas vezes, de um tempo que parecia interminável na apresentação da cena pretendida. O tempo que se arrasta depois da velocidade da juventude. Do mesmo modo que parava a câmera em alguns ângulos e objetos específicos, como o modo de filmar a pia da cozinha cheia de louças, por exemplo. “Os objetos são inertes, têm significado apenas em função da vida de quem os utiliza”, afirma Paul Auster em O inventor da solidão. Haneke nos fazia respirar decididamente o ar daquele ambiente. Só então, descobri o motivo de minha súbita angústia, estava dentro da trama. Havia ao meu lado um casal que beirava os setenta. O senhor estava muito agitado se mexendo na cadeira, cochichando no ouvido da esposa e rindo nervosamente. Ele me parecia absolutamente identificado ao marido na trama, e eu, pior, me identificava a ele, como se ele me dissesse tal qual o antigo comercial: “Eu sou você amanhã”. O tempo a passar estava me espreitando, aguardando para subitamente me lembrar de que eu já estava velho e era refém de meu débil corpo e agilidade. O amor é uma loucura. Não há razão no amor. O corpo envelhece, mas o amor enlouquece. Há uma fase em que ele nos rende um bom sintoma, ele nos conduz ao outro, abre a possibilidade de que o sujeito não se baste, que experimente a falta e um desejo que não se reduz a si próprio. Numa boa hipótese, é claro! Depois do que acabo de escrever e empurrar para vocês, um otimismo é o mínimo que lhes posso oferecer. Há um casal, eles estão a muitos anos juntos, ambos são musicistas. Georges e Anne compartilham a rotina, a cumplicidade de anos e o gosto pela música. A doença de Anne os leva a um derradeiro pacto. Ela o faz prometer que ele não permitirá que ela retorne ao hospital. Ela sabe que ele o fará. Ela talvez não fizesse o mesmo por ele, mas como saber? O que vamos ver a partir daí é o amor como loucura de dois visando o Um. O amor de Georges é o dois que visa o Um. Não há espaço para terceiros, é permitida a presença limitada de uma enfermeira. Fora isso, é um mundo habitado por duas criaturas nos limites de suas vidas. A existência do casal pesa nos corpos que aprisionam suas almas. Georges e Anne vivem os últimos e sufocantes fôlegos de um louco amor. Quando digo louco é porque quero afirmar que o amor é a desrazão que nega a impossibilidade do Um. O ato de Georges é uma última prova de amor ou de sua impossibilidade no mais profundo limite da vida? Se eu pensar na pomba que ele liberta após seu ato, posso ver no seu gesto algo libertador. Contudo, se me baseio na pequena história que ele conta para acalmá-la, antes de seu ato, faço outra leitura. Pois é a história de um menino e a insuportável separação de sua mãe. Anne depois disso se tranquiliza, me pareceu, ele, no entanto, se decide quanto ao ato. Ele não pode salvá-la com seu amor e dedicação. Ela está por um fio, sua vida se esvai. O que ele não suporta? Eu creio que ele precisa dela para viver, e não o contrário. Georges me parece mais dependente, mesmo levando em conta a situação de Anne. Ele, com seu ato, parece lhe ter para sempre. Sempre é um termo ou modo de driblar o impossível. Os contos de fada terminam invariavelmente com o tal: “E foram felizes para sempre”. Haneke vem nos trazer a loucura do amor neste encontro sempre fadado ao impossível. Os corpos consumidos e deteriorados pelo tempo teimam em aprisionar as almas, as impedindo da liberdade prometida do verdadeiro amor. Amar é um ato insano e necessário. Não há a menor esperança, dois seres não realizam o encontro do Um. Georges com seu ato mumifica o amor, um amor do qual não pode se separar. Ele não, talvez ela sim. Ressalto, para terminar, as belíssimas interpretações de Emmanuelle Riva e Jean-Louis Trintignant. Vejam o filme. 07\02\13

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