terça-feira, 15 de novembro de 2011

A pele que habito ou a paixão que não permite ao gozo condescender ao desejo

         
         O novo filme de Pedro Almodóvar foi muito bem recebido pelo público. Mas, há aquele fenômeno que se dá com sua obra: alguns detestam radicalmente tudo que ele faz. Isso torna tudo mais interessante na medida em que sua obra é polêmica, seus filmes não passam em branco, eles sempre produzem efeitos impactantes.
            A pele que habito é neste sentido mais ousado ainda. Baseado no livro do francês Thierry Jonquét, Tarântula, aborda temas que mexem com as emoções e valores humanos. O filme seria um prato cheio para os estudiosos da Bioética, contudo, ele toca mais o campo do inconsciente. Não é por acaso que Almodóvar alterna cenas de ficção científica com aquelas que citam a obra de Louise Bourgeois. O corpo pode ser abordado em sua dimensão real, como objeto de estudo e manipulação da ciência, mas também afetado pelo atravessamento traumático do significante, o corpo submetido à experiência com a linguagem. Ser homem ou ser mulher não se reduz a uma realidade anatômica, passa necessariamente por uma enunciação desejante em sua relação ao significante fálico.
            Se na obra de Bourgeois nos deparamos com “o retorno do desejo proibido”, com este novo Almodóvar vislumbramos a incidência de um gozo jamais interditado. A tragédia está decisivamente presente na vida do renomado cirurgião Robert Ledgard (Antonio Banderas). Ele se vale de um saber, ele opera muito bem com aquilo que seu conhecimento acadêmico permitiu. Entretanto, ele não é propriamente um cientista, pois é agido pela paixão de um gozo que não se quer perdido. O verdadeiro cientista é movido por uma perda, uma falta de saber, Robert, ao contrário, age obcecado pela paixão do gozo não interditado.
            Nomeio este gozo como incestuoso, é um filme sobre o gozo perverso, sobre o incesto, embora Almodóvar não necessite nomeá-lo desta maneira. Robert, na busca enlouquecida por seu gozo que não se quer perdido, visa reintegrar a mulher e a filha perdida com o pretexto de uma vingança. Ele renega no apelo desesperado de Marília (Marisa Paredes) o não de uma mãe que estaria finalmente castrada, não fosse a prevalência de sua lei perversa: _ “Mata ela”. Robert não sabe a verdade sobre sua mãe e seu irmão. Ou melhor, é permitido que saiba sem saber, digo, com o seu: mas mesmo assim... . A devoção de Marília é muito suspeita. A perversão é o véu sobre o pecado do pai e sobre o gozo não interditado na mãe. O irmão leopardo (é um leopardo mesmo?), figura surreal e genialmente introduzida por Almodóvar, é a personificação da perversão presente nessa linhagem.
            Vera, interpretada pela linda (lindíssima) atriz Elena Anaya, é um Frankstein contemporâneo, a transexualidade e a pele que habita fazem dela a criatura de seu criador. Ela parece ter esquecido seu passado, ela reconta sua tragédia nas peças que passa a criar inspiradas na grande artista já citada, Louise Bourgeois. Como em todo grande clássico, há o momento em que a criatura se atormenta, ela estranha, ela percebe algo de sua condição monstruosa. Acontece, que diferentemente de seu criador, ela pôde reconhecer sua história e sua identidade através de uma nomeação que estava recalcada, nunca foracluída nem renegada, o nome e a ausência reclamados por uma mãe faltosa.
            Vera, não mais alienada à paixão do gozo não interditado de seu algoz, devolve ao médico, antes de partir, seu destino trágico. Almodóvar nos demonstra que o herói trágico é sempre clássico, pois sempre cumpre o destino inexorável de sua condição humana. A ciência pode evoluir, mas o humano sempre estará assujeitado a sua divisão de ser falante.
            Bravo Almodóvar!
            15/11/2011

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