domingo, 21 de outubro de 2012

Quando amar é o que brota do lodo do ódio

Atire a primeira pedra quem não se envolveu com o final de Avenida Brasil. Vera Holtz fez uma linda corruptela: “Ave Brasil”! A novela de João Emanuel Carneiro realizou uma perfeita síntese desse Rio de Janeiro que passa da primeira década do novo século. A cidade do futuro e das Olimpíadas de 2016 é justamente aquela metaforizada pelo Lixão. Se há crime, impunidade, negligência e injustiça, João Emanuel Carneiro cria, sobre aquilo que já existe, uma espécie de purgatório por onde vítimas e algozes devem passar. O lixão é real tanto quanto é uma imagem “apoética”, Dali chamaria de método crítico-paranóico. Isso quer dizer que é a própria interpretação da realidade. Uma trama que começa no Lixão pode dar no que? O ódio funda o amor. Eu só posso me pensar eu, se puder me separar do Outro. Mas, para isso, tenho antes que me reconhecer nele. Logo, de início não há Carminha sem Nina e vice-versa. A história das duas protagonistas apresenta toda sorte de elementos que permitam significados terríveis e abomináveis. Ficamos mesmo tentados a depositar “nesse próximo de mim” todas as razões para minha infelicidade, minha orfandade e desgraça. Carminha veste muito bem a megera. Sempre precisamos de uma: a madrasta da Cinderela, a bruxa da Branca de Neve e Cruela Cruel. Carminha é a mais nova imagem arquetípica de um Brasil abandonado. Sim, porque descobrimos que ela também foi vítima. Somos filhos de uma nação parida, rezava a história, como que “por acaso”. Somos todos bastardos ou mal adotados. Em suma, João Emanuel Carneiro nos deu um nascedouro: o Lixão. Mas, o artista tem seus métodos. Ele nos guiou por uma trama que pôde nos dar alguma esperança. Um Cadinho que pode amar e casar com três mulheres e, ainda assim, ser fiel a elas; uma periguete que pode ensinar a qualquer mulher como amar seus homens e, incrivelmente, a melhor tradução do macho brasileiro dos dias de hoje: um cara que larga a chupeta para descobrir, enfim, como amar uma mulher (não perder o pênalti). Mas, não se assustem, digo aos conservadores de plantão que é tudo licença poética. Além do mais, o subúrbio entrou na moda, sobretudo, quando nos ensina a encontrar a alegria espontânea e verdadeira, um retorno à simplicidade que nos livra dos anseios de certas insígnias de poder e valor. A vida pode ser mais simples: Oi Oi Oi.... . A casa da família Tufão, mais especificamente a mesa de jantar, é o retrato sociológico e antropológico de um Brasil no novo século. O dinheiro muda de mão, as relações arcaicas entre o senhor e o serviçal ganham novas cores, os laços familiares se sustentam no fio da navalha do fracasso. Contudo, ao final de mais um dia, estão todos à mesa. Bebendo, falando alto, um invadindo a vida do outro. João Emanuel Carneiro vai sentir muitas saudades dessa família. Tendo Tufão como o paradigma do brasileiro sempre confiante: “o corno é sempre o último a saber” (por alguma razão me ocorreu a figura de Lula frente ao Mensalão). Todavia, ressaltemos o mérito de sua benevolência que o permitiu ser pai de filhos adotivos. Parabéns Tufão! Voltemos às protagonistas: Carminha e Nina. Amar não é uma coisa do bem, das melhores intenções. Esse é o amor egoísta, pois o que te peço é que me retribua na mesma moeda. No ódio não é assim, a moeda pode sempre ser outra, a pior. As duas viveram da paixão do ódio, talvez a mais poderosa. Por essa paixão sacrificaram suas vidas, colocaram as melhores coisas em risco. Viajaram até o mais profundo do lodo do ódio. E aí o que encontraram? João Emanuel Carneiro novamente nos deu uma linda lição. Quando ali elas finalmente chegaram, puderam voltar a viver. O objeto do meu ódio, elas descobriram, não é você, mas o meu mais arcaico sentimento de desamparo. Somos duas mulheres forjadas na origem de nossa desgraça. Dois sujeitos que cedo demais tiveram que se separar do objeto amado, por isso elas eram mais fortes, por isso aguentaram toda a barra que viveram. Carminha e Nina nos ensinam que amar brota do lodo do ódio, o ódio de ver-se desamparada como condição humana. Não há algoz, não há figura maligna que possa justificar minha desgraça, e elas até tiveram motivos em suas histórias. O amar só é possível, depois de sobrevivermos ao ódio de constatarmos que não há Outro culpado de minha infelicidade. João Emanuel Carneiro nos aponta uma bela possibilidade: Faça o melhor com o quase nada que recebeu. Pare de justificar sua covardia e arrogância em nome daquele que seu ódio narcísico e doentio insiste em fazer consistir. Se assim puder transcender, quem sabe no fim, haverá apenas a diferença? 20/10/2012

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