quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Não é uma bomba atômica

Enquanto os líderes do mundo ocidental estudam um bloqueio comercial ao Irã em decorrência de uma suposta produção de armas nucleares, chegam as nossas telas cópias de uma produção de baixo orçamento: Separação de Asghar Farhadi. Há gente pensando e produzindo coisas interessantes no Irã. Apesar do contexto controverso que se divulga a respeito desse país, há mais do que bomba, petróleo e tapete persa por lá.
Assim, não falo de uma bomba atômica, senão de uma trama que aborda questões que nos levam a refletir sobre temas universais e cotidianos. Não vou me adiantar afirmando que se trata do melhor filme do ano, como fez Artur Xexéo em sua coluna. Mas, é uma ótima oportunidade para verificarmos que as diferenças culturais não eliminam os traços humanos que se marcam nos falantes, seja aqui ou em qualquer parte do mundo, diante de seus conflitos existenciais.
O que é um casal? O que é a dita relação natural que une homens e mulheres desde os tempos das cavernas? Os animais, digo macho e fêmea, acasalam para preservar as espécies, mas que história é essa, a de que homens e mulheres façam o amor?
O filme começa com uma catástrofe, a separação. Toda a ordem das coisas é abalada por isso. Levem em conta que se trata de uma cultura em que a devoção e a submissão ao casamento, sobretudo da esposa em relação ao marido, está relacionada à Lei de Deus. Concordemos ou não com isso, é isso que entendemos logo no início do filme. Entretanto, li recentemente que há uma epidemia de pedidos de divórcios no Irã.
A separação irá trazer toda sorte de mazelas, desde o desamparo da infância e da velhice até a morte. A unidade conjugal segue a ordem de Deus. Quando isso fracassa o mundo daqueles personagens é profundamente afetado.
A governanta representa a posição das mulheres ajustadas aos valores religiosos e culturais dessa sociedade. Já Simin (Leila Hatami) é a voz das mulheres que questionam o instituído e anseiam por mudanças. Simin é uma mulher que quer agir conforme seu desejo. O que não significa que ela não ame o seu marido, não é isso. Ela quer amar o seu homem a sua própria maneira. A governanta ama a Deus, em nome de sua devoção a Deus é complacente com a sua miserável vida ao lado do marido quase arruinado. Quem dirá que não é uma forma possível de amar? O amor neurótico do sujeito pelo Outro.
A miserável governanta vem em socorro de um mundo sob catástrofe, com um filho na barriga, uma criança pela mão e um velho doente de Alzheimer para cuidar. O desamparo incide ali onde um casamento foi desfeito. Vocês sabem, o desamparo é um poço sem fundo. A governanta não tem nada mais para dar senão seu sacrifício.
Nader (Peyman Moadi) não pode abandonar seu pai. Paga o preço de ver Simin partir. O desejo dela está endereçado a um exterior, digo, a uma cena fora dali, daquela casa onde um homem não pode amá-la, pois quem responde é um filho endividado com seu pai. Aquele velho senil é o que resiste, é o resto que chega a chamar por Simin, que pede o jornal que não pode ler e que se urina. Alguém que impõe com sua presença e silêncio ser cuidado pelo outro, é puro resto. Mas, Nader encontra naquele quase nada de existência, a consistência de seu fantasma. O pai pode não saber que ele é seu filho, mas Nader sabe que aquele homem é seu pai. Carrega uma dívida, por isso não pode seguir com Simin, não pode fazer dela sua mulher, é isso que ela pede a ele. Simin sabe que nenhum Deus pode garantir isso.
Termeh (Sarina Farhadi), a filha adolescente do casal separado, fica com o pai, parece tentar salvá-lo de seus apuros. A jovem começa a perceber as dificuldades desse homem que é seu pai. Ela tentará agir na tentativa de ampará-lo. Há uma subversão da ordem das coisas quando Simin vai embora. A impotência de Nader faz com que Termeh passe da posição de filha a ser cuidada para outra em que sustenta o pai, tentativa de velar sua impotência.
A situação desencadeada na trama que levará os dois homens (Nader e o marido da governanta) ao tribunal descortinará as precárias condições dos mesmos. Dois homens humilhados e feridos em sua honra. Um por ter sido abandonado pela esposa, o outro por ver a própria esposa humilhada por aquele que foi deixado, tendo a governanta aceito o trabalho em segredo para justamente livrar o marido de seus credores.
Simin não quer a suposta verdade factual sobre o evento, ela sabe que algo da verdade está em outro lugar, ela sabe do desamparo que acometeu aqueles homens impotentes. Simin, com seu saber, quer proteger a filha da desgraça anunciada daqueles homens, pois teme que mais um ato violento venha a acontecer. Ela não espera mais que Nader possa se ocupar da posição que ela desejava para ele, a de um homem para ela. Simin deverá seguir sua vida, quer levar a filha com ela.
Tanto a pequena menina, filha da governanta, quanto Termeh, a adolescente, sabem mais do que podem dizer, por isso elas temem dizer o que sabem. Elas sabem alguma coisa que é o obsceno entre os casais: que não há a relação sexual. Elas vão aos poucos nos revelando que sabem algo sobre isso, mesmo “sem saber”.
Alguns não gostaram do final do filme, argumentam que não houve fim. Assim como Nader e Simin, ficamos esperando do lado de fora da sala do juiz a resposta de Termeh. O diretor usa muito bem alguns recursos do cinema, como a câmera que filma como se fossem nossos próprios olhos, a visão sofrendo a interferência do movimento dos nossos corpos, lentes que descortinam ambientes que nós mesmos penetramos, embora estejamos plantados na cadeira. Sim, ficamos esperando do lado de fora pela resposta de Termeh. Dê o seu palpite. Melhor, qual seria a sua? Até!
09/02/12  
       

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