Hoje cedo li a crônica do Xexeo sobre
os dias nublados no Rio de Janeiro. Fiquei pensando sobre os tempos cinzentos
que descolorem nossa atualidade. Vivemos um período sem grandes novidades, tudo
parece já visto ou reeditado. Fiquei um tanto enjoado e entediado com mais uma
semana que acabava de começar. Não contava com o que estava por vir.
Programação de cinema na mão e a boa
surpresa ao saber que o filme de Walter Carvalho (Raul: o início, o fim e o meio) ainda estava no circuito. O final
da tarde foi emocionante. Demorei a sair da sala de projeção, fiquei muito
comovido. Ao concluir com o fim que é a morte, o diretor nos deixa com o meio:
nem mito, nem verdade, mas o que ele nos faz entrever sobre um homem, seus
parceiros, amores, músicas, a dor de existir, enfim, as coisas que tornaram
Raul um genial e improvável roqueiro baiano apaixonado por Elvis Presley. O
título do filme é uma sacada maravilhosa do diretor ao condensar Raulzito:
Eu sou o início,
O fim e o meio.
Seria ele uma metamorfose ambulante?
Certamente, uma lhe ocorreu quando ainda era uma criança e se apaixonou por
rock’ n roll. Se tudo começa do começo, Walter Carvalho faz referências ao
começo de tudo, o contexto que acabaria por lançar aquele menino baiano no
mundo. E aí um depoimento:
“O Rock não era contra o pai, mas
algo que dava ao jovem uma virilidade com a qual o permitia se medir ao pai” _
não é exatamente isso, mas assim se transmitiu para mim.
O Rock é masculino, mas não existiria
sem suas musas, nem sem Rita Lee, é claro! Mas o Rock é uma ereção, e isso,
pelo visto, nem as bebidas e as drogas roubaram de Raul. Um menino de minha
geração não poderia prescindir dos acordes voluptuosos de uma guitarra. Era
Viagra na veia! É incrível como o diretor consegue arrancar juventude e frescor
presentes nas expressões e depoimentos daqueles velhos companheiros de
adolescência. Alguns, mesmo que castigados pelo tempo, ainda conservam traços
da alegria e da beleza impressos em antigas fotografias. Mas não sejamos
completamente românticos, a erótica do Rock é curiosa, a combinação de sexo,
drogas e rock’n roll tem levado muita gente a um final melancólico.
Nasce Raul Seixas, o improvável
roqueiro baiano, surgido das influências musicais de Chuck Berry, Little
Richard e, sobretudo, Elvis Presley. Um inglês com sotaque baiano, golas
puxadas para cima, atitude e talento fizeram o artista. Há muitas histórias,
muitos risos e boas gargalhadas. É um momento muito pitoresco e contagiante do
filme. Uma grande citação aos tempos, companheiros e parceiros que marcaram o
percurso de Raulzito. Ele teve bons e inspiradores amigos, parcerias incríveis,
como as com Cláudio Roberto.
Paulo Coelho não foi seu amigo, não
no sentido próprio do termo. E não é necessário definir o que foi a relação
entre eles. Walter Carvalho não foge das questões polêmicas, o que é
fundamental é que ele não tem a pretensão de que elas sejam respondidas. O
diretor sabe o que quer com suas lentes, se há algo que ele não quer é fechar a
perspectiva para buscar a verdade no fundo. As perguntas interessam mais que as
respostas. Nesse sentido, Paulo Coelho é bem interessante, seu depoimento é
absolutamente distinto dos outros. Ele fala sem manifestar afetos, sem se
comover e nem achar nada muito engraçado, a relação dele com o Raul foi o que
foi, rendeu ótimas parcerias, se amaram e se odiaram. Sim, apresentou todas as
drogas ao roqueiro. Sem problemas, Raul já era adulto. Como se dizer tudo isso,
assim desse jeito, não tivesse grandes consequências. “Paul Rabbit”, como
brinca Eduardo Dusek, me convencia. Até chegar ao primeiro momento estranho.
Eis que no meio da entrevista, em Genève, pinta uma mosca. Paulo Coelho diz que
não há moscas por lá, então, me pareceu que ele ficou “bolado”. Eu me perguntava
se não era um efeito especial pensado pelo diretor. Contudo, imaginei o Walter
Carvalho levando a mosca num vidrinho até a Suíça. Loucura, né?
Outro momento tenso da entrevista foi
quando Paulo Coelho teve que responder a afirmação feita, por um seguidor de
Aleister Crowley, de que Paulo Coelho jamais reivindicou a devolução de uma
procuração sobre a gestão de sua alma deixada por escrito pelo próprio escritor
a ele, seu mentor ocultista. O cara alega que seria necessária uma carta por
escrito. O autor de Diário de um Mago
propõe jocosa e nervosamente: _ “Não serve o abandono?”. Bom o cara é mago,
quanto a mim, não deixaria uma procuração sobre minha alma com ninguém!
Pois é, Paulo Coelho se destaca de
tudo que há no filme, e ficamos sem saber exatamente por que. E foi muito bom
isso. Não era mesmo para se saber. Há algo que só eles viveram no auge da
loucura, juventude e criatividade. Para que julgar? Pensei neste instante num trecho
do Rock do Diabo:
Enquanto Freud explica,
O diabo dá um toque.
Então, o espaço é aberto para os
amores de Raul. Fiquei impressionado. O cara foi muito amado por suas
companheiras (Glória, Tânia, Kika e Lena)! Edith, a primeira esposa, que havia
se retirado de cena levando a filha do casal, Simone, se esquiva dos
depoimentos. As outras, por alguma razão, mais generosas falam coisas
surpreendentes. Em que sentido? Apesar de todo o sofrimento e drama acarretados
pelo alcoolismo e a diabetes de Raul, aquelas mulheres o amaram profundamente.
Até onde uma mulher se sacrifica para salvar o seu amor? E parece que estariam
dispostas a ir mais além. São depoimentos belíssimos, mesmo em momentos até
risíveis. As mulheres de Raul entenderam a sua alma, sua liberdade, seu drama,
enfim, a sua loucura ou melancolia. Quanto aos filhos, eles aparecem através de
suas mães, mais, no desejo delas por aquele homem. Fica, no entanto, o mistério
sobre Edith e Simone, a filha que Raul se viu roubado.
O diretor aborda ainda a polêmica
parceria com Marcelo Nova (Camisa de Vênus). Teria o citado músico se utilizado
da frágil ou delicada situação de Raul para se projetar? Walter Carvalho abre o
espaço para que a pressa não decrete a verdade. Cada um age por suas razões. Às
vezes, o mal parece o bem, em outras, o bem sugere o mal. Paciência. Ninguém é
tão santo ou diabo. Ou, cada um pinta seu santo ou diabo como quer.
O filme conta com as participações
super especiais de Nelson Motta, Pedro Bial e Caetano Veloso. Walter Carvalho
consegue diluir certezas, evitar julgamentos, manter questões em aberto. Não
quer fazer consistir o mito, nem a verdade. Ele tem a visão sensível da obra
que inclui o homem marcado por sua história, sua arte e dor de existir_ o
humano.
Walter Carvalho reserva para o final
uma grande questão sobre o artista. Raul tinha certa obsessão pela morte. Por
um lado, parece que a proximidade dela lhe era libertadora, visto de outro
modo, sua presença, por vezes, lhe era persecutória. Seu irmão conta que em certa
noite Raul, ainda menino, o acorda com um medo intenso da morte. Conta este que
o aconselhou um velho remédio: “_ Mano, bate uma bronha!”. Acho que Raul passou
a vida negociando com a morte. Haveria ainda outra metamorfose? O alegre menino
e improvável roqueiro baiano teria se transmutado em um homem melancólico e
cedido definitivamente ao álcool e as drogas? O diretor, numa recente
declaração, afirmou que Raul morreu de amor pela primeira esposa, não teria
superado seu afastamento e o da filha. Isso teria sido decisivo para sua morte
precoce aos 44 anos. Assim, o filme termina com um tango, uma de suas melhores
obras: Canto Para A Minha Morte:
A morte, surda, caminha ao meu lado
E eu não sei em que esquina ela vai me beijar...
Vou te encontrar vestida de cetim,
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho que eu quero e não
desejo, mas tenho que encontrar
Vem, mas demore a chegar.
Eu te detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida
Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida.
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