quarta-feira, 28 de março de 2012

Shame ou a Estética do Real

           O cinema é uma constante revolução, mesmo quando não gostamos do que vemos. O espectador não é um psicanalista, mas por alguma razão esse é o meu ofício. Não gostei do que vi. Mas, não posso evitar os efeitos de um registro que se pretende artístico. O diretor britânico Steve McQueen, apesar de contar com as bordas da telona, rasga a fantasia para nos fazer entrever um real e angustiante cenário sexual desse novo século. Uma Nova York citada nas imagens de alguns de seus becos, buracos sujos, inferninhos e vistas panorâmicas. Nada de poesia ou romantismo, o diretor nos oferece uma estética que se adequa muito bem à Nova York depois dos atentados às Torres Gêmeas.
           Queria falar da fantasia, mas vivemos no tempo do deserto do real. Quando não há a lei nada mais é possível, a não ser a destruição do sujeito. Contudo, apesar de todo o horror, no final, havia uma escolha. Eu rezei para todos os meus deuses para que Brandon (Michael Fassbender) visse naquele anteparo, em que a jovem linda e sedutora pôs a mão, uma barra. O filme termina ali onde a barra é o último recurso. Será?
           Eu não escrevi sobre O Artista, por quê? Um filme sobre a arte e a história do cinema. Eu não sei. Que sintoma é esse o meu o de falar do pior? Que tipo de interesse mórbido é o meu? Não é isso, é que o psicanalista não pode dar a sua angústia. Não pode recuar frente ao seu desejo. O de estar do lado do inconsciente. Brandon é um sujeito contemporâneo, alguém que não quer saber. Não quer saber do que não se sabe: uma verdade sobre o que está em causa no seu desejo sexual.  Talvez não seja exatamente isso: “ele sabe, mas mesmo assim”...
            Seja como for, o que percebemos é que por não poder reconhecer nem nomear algo de seu desejo, ele está aprisionado a um gozo compulsivo e mortificante. Ele é um viciado em sexo, ou será que o sexo se viciou nele? Brandon sabe todos os caminhos, ele tem acesso a tudo que é possível de se consumir sobre sexo, ele quer, no entanto, esquecer que é ele quem é consumido, ele é a mercadoria de seu próprio gozo insaciável.
             Aí entra em cena Sissy (Carey Mulligan), a tragédia personificada de suas vidas. Uma personagem carente e devastada que devolve a Brandon algo sobre o seu passado, sobre o abandono, sobre a perdição das criaturas que se tornaram. Haverá um desejo incestuoso entre eles? Esse não seria exatamente o problema. A questão é que ninguém ou nenhuma lei veio interditá-los. Eles estão desgraçadamente carentes dessa interdição fundamental. Desesperadamente, Sissy pede a Brandon que ele a ampare. Esse é um pedido que é insuportável para alguém que só pode responder com seu gozo sexualmente indiferenciado, ele traça de tudo, se não correr para seus buracos sujos vai acabar comendo a irmãzinha, contudo, aí está, por alguma razão, ele a protege disso. Ele deu a ela uma toalha quando ela estava nua diante dele. Ele foi para rua para não escutar a trepada dela com seu próprio chefe casado. Ele diz a ela inclusive que ela é uma imunda por isso. Incrível, logo ele que se deita ou faz sexo com qualquer coisa. O uso que Brandon faz do sexo o coloca numa posição perversa, mas jamais numa psicose. A verleugnung (desmentido) diz respeito a duas operações concomitantes: a de reconhecer a castração e a de recusá-la ao mesmo tempo.
            Brandon não conseguiu fazer sexo com sua colega de trabalho. Algo fugiu do controle, quem sabe ele se deixou envolver, isso seria “fatal”, pois o deixaria numa posição faltosa, inviabilizando sua impostura perversa. Ele está numa posição limite em sua perversão. O perverso se angustia, pois sabe da castração, mas não se angustia em sua posição fetichista, a angústia incide num outro lugar: a posição de Sissy.
             Sissy é uma psicótica ou uma histérica devastada? Não sabemos. O que sabemos é que ela passa ao ato. E que isso faz com que Brandon ceda em sua posição perversa. Ele se angustia e se desespera. A impostura perversa não tem êxito em sua questão incestuosa com a irmã. Já disse que não acho que ele fosse capaz de trepar com a irmã. Por isso mesmo é um fetichista. Contudo, ambos sofrem da carência da lei que viria interditá-los.
            A estética do real nos descortina uma “ultrarrealidade”, como se isso fosse possível, um mundo onde o Édipo fosse abolido da questão humana. Não penso que haja a possibilidade do humano sem essa estrutura mínima e necessária. Acredito também que McQueen pensa da mesma maneira. Sua “ultrarrealidade” visa uma ética. Por isso rezei aos meus deuses, por isso não lhes dou minha angústia, para sustentar minha posição ética.
28/03/2012

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